Crítica e autocrítica, método revolucionário
Mais uma vez os resultados eleitorais, desta vez para a presidência da República, foram desfavoráveis ao PCP e à sua candidatura. Muitos militantes se interrogam sobre a razão de tais resultados. Nas últimas eleições legislativas em 6 de outubro de 2019, a análise feita pelo CC não mostrou sombra de autocrítica relativamente aos seus resultados. Culparam-se os outros partidos, que fizeram cada um o seu papel, como é óbvio, e a comunicação social.
As razões não se encontram apenas no exterior do PCP. É imprescindível que se procure uma razão, ou razões, na própria ação, que as haverá certamente. Uma análise crítica marxista-leninista seguramente não deixaria em branco esse campo.
Em todas as eleições, muitos militantes do Partido atribuem os maus resultados ao facto de a “mensagem não passar”, isto é, o Partido teria razão mas o eleitorado não compreenderia a justeza das suas posições. Educados cada vez mais no eleitoralismo, esses militantes não compreendem que eleições em sistema capitalista não são livres nem justas, que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante que a comunicação social expressa e acarinha. Que esses militantes assim pensem é compreensível. Porém, trata-se de que a direção do Partido, pensando em votos e não no trabalho a fazer para a acumulação das forças que um dia porão fim ao capitalismo, isto é, no trabalho de educação política das massas, esconde e/ou abandona os seus princípios à espera de que isso possa render votos. Abandona o socialismo científico e a experiência histórica que mostra que a passagem do capitalismo ao socialismo não se faz só com votos e pressupõe uma via revolucionária, mais ou menos violenta em função de condições dadas. Esquece o papel das eleições em democracias burguesas e o papel que as forças revolucionárias devem ter nestas circunstâncias.
Lenine dizia que as eleições burguesas eram apenas uma forma de tomar o pulso ao grau de consciência do proletariado, em parte definindo o posicionamento dos comunistas em eleições dentro do sistema capitalista.
Assim, cuidando que se benze, o PCP parte o nariz, isto é, abandona os princípios para ter mais votos, mas não tem, porque os que antes confiavam nele como alternativa real para os trabalhadores, alternativa que na verdade saía do “sistema”, deixaram de confiar e, ou abstêm-se, ou votam mal.
Eleições e eleitoralismo
Sob uma forma mais elaborada, sem contudo esconder os seus objetivos, dissidências socialdemocratizantes do PCP defendiam que o Partido deveria abandonar a sua linha marxista-leninista para obter uma melhor aceitação na sociedade (não na classe) e melhores resultados eleitorais. Essa última formação dissidente – os “renovadores” - foi combatida e derrotada no XVI Congresso, mas as suas ideias ficaram e foram apropriadas por outros dirigentes agora dominantes no Partido.
Assim se explica a centralidade dada às eleições na tática do PCP. A tática pequeno-burguesa afunila a orientação do Partido para o terreno parlamentar. Mesmo falando constantemente na luta de massas, o facto é que as lutas e os problemas dos trabalhadores são canalizados para soluções parlamentares, o que explica o facto de, muitas vezes, o Partido considerar feita a sua “obrigação” quando apresenta perguntas, resoluções ou projetos de lei no parlamento a propósito de alguma questão que diga respeito a reivindicações populares. Não se vê o PCP levantar, coerente e consequentemente, a voz ao governo do PS. Não se vê o PCP traçar “linhas vermelhas”, como agora se diz, ao governo em torno de questões como, por exemplo, o aumento dos salários da função pública, a questão dos professores na última legislatura, a questão da TAP, a alteração das medidas gravosas do Código do Trabalho e da Lei do Trabalho em Funções Públicas para falarmos apenas em duas ou três coisas.
Voltemos às eleições.
Abandonando os princípios de classe, abdicando da sua natureza de vanguarda da classe, socialdemocratizando-se, seria então suposto, para os que assim pensam, que o PCP alcançasse resultados eleitorais extraordinários. Mas assim não acontece, bem pelo contrário, e de há muito tempo a esta parte em eleições autárquicas, legislativas e presidenciais como a que acaba de decorrer. Aqui deveria entrar a análise científica, materialista, marxista-leninista deste problema e não a análise superficial, choramingas e passa-culpas que há muito tempo é feita a cada reunião do CC depois de cada ato eleitoral.
Temos de dizer à partida que consideramos que a ideologia dominante domina efetivamente as massas de trabalhadores que vão depor o seu voto com base no que veem na televisão, aprenderam na escola, ouviram em casa desde crianças ou leem no facebook e que, enquanto a base material dessa ideologia dominar, assim será sempre, mais ou menos ponto percentual. E acrescentar que todo o arsenal de guerra ideológica será utilizado contra os explorados enquanto o capital dispuser dessa arma. Isto porque, durante muito tempo no socialismo ela vai exercer os seus efeitos, enquanto as razões materiais da sua existência não forem definitivamente superadas. Portanto, é este o quadro em que se desenrola qualquer eleição em sistema capitalista. Não se pode esperar compaixão do inimigo nesta luta de vida e de morte.
“Democracia” e democracia burguesa
Quase meio século passado sobre o 25 de abril, a contrarrevolução continua e continua também a deterioração das condições de vida das grandes massas de trabalhadores e outras camadas exploradas. A situação da pandemia mostrou e vai ainda mostrar mais a iniquidade do capitalismo e não da “política de direita”, a iniquidade do sistema e não apenas de aspetos parcelares dele, de políticas de direita e de “esquerda” que levam a água ao moinho dos exploradores. A situação mundial e os aspetos mais escabrosos do imperialismo mergulham os povos e as classes explorados do mundo numa crise nunca antes vista agravando a que se iniciara em 2008.
Na ausência de perspetivas e de forças de vanguarda, o descontentamento, a desorientação e o desespero apossam-se das massas. Coloca-se hoje, face à evolução dos acontecimentos históricos, a questão da falência do sistema político dito “democrático”. Nos países capitalistas desenvolvidos é o sistema da alternância entre os partidos de direita e de “esquerda” que não leva a lado nenhum, que não resolve um único problema dos explorados. Cansados de ouvir tantas promessas não concretizadas, vendo a continuação da corrupção, as injustiças sociais, a falta de perspetivas das suas vidas, perdem a confiança na organização política tal como hoje existe, rejeitando os partidos em geral o que por vezes se traduz na afirmação de que “são todos iguais”, ou escolhendo soluções que se afirmam “fora do sistema” e não são mais do que exacerbações do sistema vindas das profundezas arquirreacionárias do passado. Não estranhem os políticos a pesada abstenção que vai havendo em cada eleição. Concretamente nestas presidenciais, pouco mais de 1/3 dos portugueses participou nesta eleição: 39,49%.
Por que vai preocupar-se um desempregado que não tem dinheiro para dar de comer aos filhos, com as especiosas destrinças entre esquerda democrática e antidemocrática, entre direita democrática e direita populista, entre centro-direita e centro-esquerda e com a miríade de novos termos políticos, suas combinações e recombinações que entraram no léxico político português depois destas eleições?
Que alternativas se apresentam perante as massas?
Podemos dizer que as massas têm razão em estarem cansadas de “democracia” se a ela juntarmos o termo burguesa que a qualifica de um ponto de vista materialista histórico. As massas estão cansadas daquilo que lhes apresentam como “democracia” pois ela é, propriamente dita, a ditadura da burguesia. Mas nenhuma vanguarda lhes explica isso, lhes diz que a democracia proletária é mil vezes mais democrática, que a ela deveriam aspirar se fossem politicamente cultas. Como essa cultura política proletária não é cultivada, como as lutas que ainda vão tendo lugar não são politizadas com vistas ao fim da exploração capitalista e ninguém faz propaganda do socialismo científico, muita gente procura “alternativas” “fora do sistema” como o Chega ou o seu candidato presidencial, abstêm-se, vão atrás de utopias mumificadas como o “liberalismo”, e outros a quem pode sobrar algum tempo para cogitar sobre a matéria, não vendo soluções para os humanos, vão juntar-se ao partido dos animais.
A votação do BE e da sua candidata presidencial, pese embora outras razões terem existido como a candidatura de Ana Gomes, parece apontar também para o facto de a correspondente parte do eleitorado se ter desiludido. Como estamos recordados, o BE apareceu como um partido radical, rebelde, e essa aura colheu bastante entre os mais jovens. Por outro lado, não se afirmando socialista, passava entre os intervalos da chuva do mote favorito da ideologia burguesa de considerar o socialismo uma ideologia antidemocrática, o que caía bem entre as massas pequeno-aburguesadas. Nada de “radical” se observou.
Entretanto, a candidatura de João Ferreira teve uma votação muito diminuta. Não se trata desse facto em abstrato, ou em si, que poderia não ser importante. Muitas vezes candidaturas ou forças políticas que se apresentam como sendo do campo do proletariado têm uma fraca votação. Nada de estranhar, tendo em conta as condições em que decorrem as eleições em regimes democráticos burgueses e a guerra que é movida às forças dos trabalhadores por todas as estruturas do capital de que fazem parte os órgãos da comunicação social dominante.
O que preocupa é a tendência decrescente para a votação no PCP. O Alentejo não é a situação mais preocupante, ao contrário do que disse o estúpido reacionarismo do PSD, do CDS e o histérico energúmeno André Ventura proclamando ter calcado o inimigo aos pés. O Alentejo foi a região do país com uma das percentagens de voto mais elevadas para o candidato. No distrito de Beja, só Marcelo ficou à frente de João Ferreira em todos os concelhos e os votos no Chega são facilmente atribuíveis a deslocação de votos de direita. Preocupam, sim, as baixas percentagens nos centros e regiões urbanas onde se concentra a maior parte da classe operária e do proletariado em geral: Lisboa 5,24%, Porto 4,67%, Setúbal 7,37%, Braga 2,78%.
Aqui chegados, coloca-se a questão central: por que aconteceu isto? Por que existe uma tendência declinante da votação no PCP e, neste caso, do seu candidato? Apontar o dedo ao inimigo de classe é óbvio, mas do inimigo não se espera nada de diferente e é um fator presente em todas as eleições.
Por outro lado, parece estar a verificar-se uma alteração da relações de força político-partidárias no nosso país, fenómeno a requerer uma análise crítica multilateral, materialista, para destrinçar as bases materiais, económicas e políticas de tal fenómeno.
Razões de um resultado
Alguns fatores que na nossa opinião determinaram a votação negativa em João Ferreira.
Em primeiro lugar, a abstenção, de resto problema que se tem verificado muitas vezes e permite uma interpretação com bastantes elementos de verdade segundo a qual o eleitorado da CDU é dos que mais se abstém. Quem quiser ouvir seriamente esse eleitorado, trabalhadores e explorados na sua esmagadora maioria, ouvirá certamente a justificação de que as eleições não resolvem nada, o que tem uma grande parte de verdade: o sistema capitalista, o regime democrático burguês não resolvem os problemas dos trabalhadores, são a razão dos seus problemas. Mas esses explorados não sabem exprimir corretamente o seu sentimento e muito menos equacionar o problema. Tristemente também não há quem evidencie junto deles as limitações do regime democrático burguês.
Em segundo lugar, o esbatimento das diferenças entre o PCP e os outros partidos social-democratas: PS e BE. Ouvimos muitas vezes a expressão “são todos iguais”. Não podemos ignorar que uma linha ideológica importante do inimigo de classe consiste em convencer os trabalhadores de que não existe uma verdadeira alternativa, que o partido de classe é igual aos outros e abre caminho para a ideologia fascista, para já não falar da compreensão, que não existe, de que os vários partidos expressam os interesses das classes da sociedade.
Acresce a isto o facto de se deixar vulgarizar no partido que (cada vez menos) se assume como partido da classe operária e todos os trabalhadores a utilização não marxista dos conceitos de “esquerda” e de “direita”, entre muitos outros. Mais ainda: deixa-se que se vulgarize a classificação do PS como um partido de “esquerda”. E muito mais: ter criado com o PS um entendimento de governo e parlamentar que ajuda à confusão e à penetração nas massas de que o PS não é um partido burguês, de que pode melhorar alguma coisa nas suas vidas, de que pode ser um aliado com quem se pode estabelecer entendimentos mais ou menos duradouros - e temos presente a doutrina leninista sobre os compromissos. Deseduca-se as massas trabalhadoras e faz-se baixar as guardas relativamente ao papel da socialdemocracia, limitando o horizonte da luta à reforma do capitalismo.
A vida mostra cada vez mais que não há lugar à reforma do capitalismo.
O terceiro fator, que determina todos os outros, é a tática e a estratégia socialdemocrática, incompreensível e utópica do PCP. As massas que votam, e sente-se que cada vez mais procuram alternativas “radicais”, vão intuindo, e bem, que nada há a esperar do sistema e do regime vigente, sentem vontade de uma mudança radical. Infelizmente, procuraram “radicalismo” em partidos folclóricos e no fascismo do Chega. Também nada de novo. Foi o que aconteceu quando as massas se sentiram traídas pela socialdemocracia e foram para o matadouro atrás de caudilhos como Hitler e Mussolini. Entretanto, abrimos um pequeno parêntesis para recordar a consideração de Marx segundo a qual os grandes factos e personagens da história universal parecem aparecer duas vezes, mas uma vez como tragédia e a outra como farsa (1), e para dizer que a alguém aproveita o medo do fascismo sentido pelas massas (agora que elas tiveram a experiência histórica do fascismo e do nazismo) para fins do seu interesse político o qual se pode expressar no raciocínio de que a socialdemocracia é um mal menor.
Não há radicalismo maior do que lutar para mudar o mundo, lutar pelo fim da exploração, lutar pela humanização da sociedade, lutar pelo socialismo. Mas esta radicalidade não é percecionada pelas massas simplesmente porque não lhes é apresentada. A lavagem ao cérebro praticada pela férrea ideologia do capital diz-lhes que o socialismo falhou e que foi um regime criminoso e ditatorial. E ninguém, audivelmente, com argumentos e com coragem, defende o socialismo e desmascara as mentiras monstruosas que o inimigo criou a seu respeito para que os trabalhadores não tivessem um objetivo por que lutar. Quando falamos em socialismo, não falamos das palavras no papel, repetidas mecanicamente e sem conteúdo no fim dos discursos, espécie de profissão de fé, falamos do socialismo que existiu e foi derrotado pelo inimigo e pela sua 5ª coluna, do socialismo que será vitorioso, um dia, em todo o planeta se ele, entretanto, não for destruído.
A juventude é uma força, é um manancial de força revolucionária. E não há nada de substancialmente diferente que o PCP lhes proponha, um ideal pelo qual lutar como desde os primórdios do capitalismo e da formação da classe operária lutaram tantas gerações de revolucionários, desde os primeiros utopistas e da Comuna. Não um ideal utópico, fantástico, mas um ideal historicamente concretizável.
A política “democrática e patriótica”, a “democracia avançada” não passam de conceitos reformistas e socialdemocratas, vazios de sentido, que nada dizem às massas. São conceitos cuja materialização histórica nunca se verificou, ao contrário do socialismo.
Em quarto lugar, a campanha eleitoral. Os fundadores do socialismo científico não se cansaram de chamar a atenção para aproveitar as ocasiões proporcionadas pelos regimes burgueses para a propaganda da ideologia e da política proletária independente. Entre elas as eleições. Nas que acabaram de se realizar – não por responsabilidade do candidato, mas da tática e estratégia socialdemocratas do PCP – a campanha não foi mais além das reivindicações imediatas, sem se ter rasgado os horizontes da luta aos trabalhadores e a todos os explorados, sem se ter criticado o capitalismo, sem se ter explicado, à luz do materialismo histórico, o papel da UE como garrote da independência nacional e fator do seu atraso continuado; sem se desmascarar a sua natureza imperialista; sem se ter exigido a saída da UE como única forma de desenvolver a economia nacional e de libertar o país e o seu povo do garrote da “dívida”; não se desmascarou a NATO nem se exigiu a saída do país desta aliança imperial e belicista.
A defesa da CRP foi o seu mote central. Mas como poderia esse tema ser diferenciador se todos os candidatos se apresentavam a sufrágio sob o pressuposto de cumprirem, defenderem e fazerem cumprir a Constituição, a começar em Marcelo Rebelo de Sousa (apesar da sua prática contrariar a teoria)? Nesse tema concreto qual era a diferença teórica entre os dois candidatos? Nenhuma. E não nos lembramos de ouvir denunciar pela candidatura que, com o concurso do PS, PSD e CDS, «A Constituição económica e social [em 1989] sofreu um gravíssimo retrocesso […]. Foram eliminados: […] o objetivo da transição para o socialismo; [… ]a irreversibilidade das nacionalizações, […] a referência constitucional à Reforma Agrária; a socialização dos meios de produção; o princípio da gratuitidade do SNS [...] (2)
A atual é uma Constituição do e para o sistema democrático burguês, não pode ser o programa de um partido ou uma política do proletariado. O papel atribuído à CRP na campanha eleitoral veio reforçar a evidência de que os objetivos do PCP, e do seu candidato por consequência, se cingem tática e estrategicamente à Constituição da República, logo ao regime democrático burguês e dela fazem a sua bíblia.
Pode dizer-se que com uma tática eleitoral que fizesse seu o objetivo central de apontar o caminho do socialismo para a resolução última dos problemas dos trabalhadores, mesmo no quadro de uma eleição presidencial, os resultados ainda seriam piores. Mesmo que assim fosse, pelo menos ter-se-ia prestado um bom serviço a todos os explorados deste país, mas verificou-se que o oportunismo político também não deu melhores resultados eleitorais.
1) Paráfrase de Marx em O 18 de brumário de Louis Bonaparte, OE em três tomos, Tomo I, p. 434 Editorial «Avante!», Lisboa 2008.
2) Constituição da República Portuguesa 30 anos 1976-2006, Editorial «Avante!», Lisboa, 2006
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