O Orçamento de Estado para 2021 - algumas considerações
Há algumas medidas do OE que beneficiam os trabalhadores, como o suplemento de insalubridade, atribuído aos trabalhadores da limpeza urbana, cujos salários, apesar disso, não ultrapassarão muito o SMN, ou a atribuição do subsídio de risco aos trabalhadores dos serviços de segurança, que abrangem largos milhares de assalariados. Mas isto não pode fazer esquecer o congelamento de salários em toda a administração pública, já há mais de 10 anos, com a inerente degradação das condições de vida. Estão aqui incluídos os médicos, enfermeiros e auxiliares de ação médica, que o governo tão hipocritamente elogia.
Diz a imprensa que aquelas medidas vão “custar” 600 milhões de euros ao OE. Parece muito. Porém, compare-se este montante com os 4,2 mil milhões de euros para o BES, os milhares de milhões de euros das PPP, o reembolso que seguramente o governo fará às concessionárias pela perda de parte das portagens, as centenas de milhões que serão pagos aos hospitais privados pelos serviços em tempo de pandemia, os juros da “dívida” de que parece todos se esqueceram e vão direitinhos ao bolso do capital bancário.
Perante a realidade dos dias de quem trabalha e é pobre e de quem quer trabalhar e não tem emprego, não podemos ser criticados por vermos o copo vazio. É que ele só tem mesmo um gole no fundo.
No espaço livre do copo continuam a estar o desemprego, os salários baixos, as pensões e reformas de miséria, a praga da precariedade, a falta de uma perspetiva de vida para os jovens, os rendimentos mais do que baixos da generalidade dos portugueses. E... a exploração capitalista.
Está também a falta de trabalhadores nos serviços públicos, como professores, médicos e enfermeiros que continuam a ser insuficientes para as necessidades, mesmo tendo anunciado o governo pouco mais de 2000 novos trabalhadores nesta área; a ruína de muitos milhares de micro e pequenas empresas; a falta de habitação condigna para muitas famílias, os salários miseráveis no setor privado; o abaixamento do salário que muitos têm de aceitar a troco da manutenção do posto de trabalho, as mais das vezes sob chantagem do patronato; as vagas promessas de uma moratória (!!!) no tempo de vigência dos contratos coletivos de trabalho como resposta à exigência da retirada das medidas gravosas da legislação do trabalho. Será vergonhoso se alguém se contentar com isto.
Está também a iníqua situação dos trabalhadores dos call-centers, dos trabalhadores da segurança privada, dos trabalhadores das logísticas e dos supermercados, dos que pertencem a empresas de trabalho temporário, dos trabalhadores de empresas de limpezas, dos das cantinas das escolas, dos auxiliares das escolas e de ação médica, dos trabalhadores da UBER e outras plataformas vampirescas, daqueles que se acumulam em fábricas mal-amanhadas sem condições e sujeitos à infeção viral e de tantos outros, sem falar dos migrantes clandestinos que também são classe operária… Não se diz que as concessões do PS em sede de OE são indiferentes para aqueles que delas beneficiarão, mas o facto é que as situações que descrevemos não vão mudar com tais concessões.
Está o aumento da idade da reforma e a manutenção – salvo nos regimes especiais de antecipação da idade de pensão de velhice do RGSS – do fator de sustentabilidade da segurança social, além da manutenção da penalização de 0,5% por mês de antecipação da idade legal da reforma.
Não podemos, ainda, deixar em silêncio a situação dos trabalhadores da TAP, com um corte salarial de 25% aos que conseguirem ficar na empresa, enquanto 2 milhares serão despedidos enquanto 1600 já não viram revalidado o seu contrato a prazo. A “viabilidade” da TAP não se pode conseguir com milhares de despedimentos, sobretudo quando se sabe que a “reestruturação” da empresa é imposta pela UE que, ao mesmo tempo, cala o facto de o Estado alemão ter subsidiado a Lufthansa com muitas centenas de milhões de euros. Com outra dimensão, a TAP muito certamente faria alguma concorrência às grandes companhias aéreas de bandeira dos países mais ricos da UE. Liquidam-se os capitais mais fracos, tal a inelutável lei da concorrência capitalista.
Na parte vazia do copo estão ainda 400 000 portugueses que são obrigados a recorrer à caridade para se alimentarem. As crianças, a faixa etária em maior risco de pobreza e que dela não sairão só com a diminuição do preço das creches. Segundo um estudo do economista Eugénio Rosa, o número de portugueses em risco de pobreza, que antes da pandemia rondaria 1,7 milhões, situar-se-á hoje em mais de 2 milhões. E, isso, o Orçamento e os milhões da UE não vão mudar.
«Mesmo em 2021, as transferências do Orçamento do Estado para o SNS serão inferiores à despesa total prevista em 1.089 milhões €. Se somarmos os saldos negativos dos 11 anos constantes do quadro anterior obteremos o impressionante montante de -12.467 milhões €. Entre 2020 e 2021, as transferências do OE para o SNS aumentarão apenas 134 milhões € (+1,3%) e não 467,8 milhões € como o governo refere na sua propaganda», diz o economista Eugénio Rosa [1].
Todos no mesmo barco?
Os bancos prosseguem o seu negócio –, empresas como a Navigator, que recorreu ao lay-off, distribuem 99 milhões de euros aos acionistas – e tantas outras que recorreram aos fundos públicos apenas para não diminuírem os lucros [2].
Parece que alguém se esquece de tudo isto e prefere agitar a bandeira dos “conseguimentos”, satisfazer-se com eles, servir-se deles como trunfos eleitorais e esquecer-se sobretudo da distância que falta percorrer para uma sociedade, já não dizemos socialista, mas, pelo menos, mais justa em Portugal. É necessário, pois, perspetivar aquilo a que os trabalhadores e o povo devem aspirar, por ser justo que o exijam, e apelar à luta por medidas para além daquelas que o PS está disposto a conceder em sede de Orçamentos de Estado a troco de uma “estabilidade política”.
E a opção de classe do Governo PS – a favor do capital e contra o trabalho – está bem clara no OE para 2021, se atentarmos no montante global dos impostos diretos sobre o rendimento e na sua distribuição entre os dois fatores: o IRC para o capital e o IRS, para o trabalho.
Com efeito, o imposto sobre o capital (IRC) fica-se pelos 28% do montante global (ainda desceu dos 32% previstos no OE 2020) e o imposto sobre o trabalho (IRS) atinge os 72% (subiu dos 68% previstos no OE 2020); isto é, o trabalho paga 2,5 vezes mais de imposto do que o capital. Por outro lado, a percentagem do PIB que vai para o fator capital atinge mais de 41% e a do fator trabalho queda-se pelos 35% (pior do que em 2011, ano da entrada da troika). Aplicando as percentagens de distribuição do PIB ao montante global dos impostos diretos sobre o rendimento, o IRC atingiria 54% (mais 25 p.p.) e o IRS 46% (menos 27 p.p.). Daí que, com ou sem pandemia, os ricos continuem a enriquecer e os pobres a empobrecer. É esta a “justiça fiscal” do governo PS e do OE aprovado na AR.
A partir da situação concreta atual da luta de classes no nosso país as organizações políticas e sociais dos trabalhadores deveriam fazer a propaganda do socialismo e a superioridade das suas soluções para os trabalhadores, perspetivar uma sociedade futura em que estas injustiças sejam reparadas e banidas, elevando a luta ao nível político, ultrapassando o horizonte meramente sindical. Foi por esta razão que se formaram os partidos comunistas, o português incluído – há cem anos – para elevar a luta de classe além da reivindicação imediata, embora partindo dela. Fazer isto seria de muito maior mérito do que fazer comemorações com juras de fidelidade a ideias e princípios que foram esvaziados do seu verdadeiro conteúdo revolucionário.
O OE e os «conseguimentos» não podem esconder a triste realidade de que o movimento dos trabalhadores está numa fase de refluxo, independentemente do OE e dos “conseguimentos”, e não serão estes que alterarão a realidade. É da perspetiva daquilo que falta fazer para uma sociedade mais justa e o fim da exploração que se deve, no concreto, fazer a propaganda do socialismo, pois, reiteramos, não basta fazer juras de fidelidade ao marxismo-leninismo e ao passado de luta, como ultimamente tem feito o PCP, que aparecem como pura retórica.
Quem isto defende não é utópico nem voluntarista. É utópico sim, quem defende “uma democracia avançada” saída da tralha ideológica revisionista da pequena-burguesia francesa do final da década de 60 do século passado!
A bazuca europeia virá muito tardiamente, as promessas de desenvolvimento económico ficar-se-ão, quiçá, pela metade e pelo que realmente interessa aos monopólios, o desemprego continuará elevado, a introdução da tecnologia em maior escala acrescentará desemprego, os que entretanto consigam voltar a trabalhar serão ainda mais precários e serão mais baixos os salários. O PS não vai responder aos profundos problemas sociais com o quadro de uma crise estrutural do capitalismo e dado todo o tipo de dependência em que o país se encontra … o resto, já se sabe, no fim vai sobrar para os trabalhadores e o povo.
A luta de massas não pode ficar tolhida por acordos politiqueiros.
Notas
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