Parte II/II
As “ditaduras”, o “totalitarismo” e os “regimes”
O inimigo principal, para a ideologia do capital é o comunismo que ataca ferozmente. A ideologia proletária, o socialismo científico, é diabolizado. O sistema socialista foi e continua a ser o alvo principal dos ataques da ideologia burguesa. A derrota do sistema socialista constitui para ela uma grande vitória da “democracia”. O capital pretende convencer os trabalhadores de que a vida nos países socialistas era péssima e que o capitalismo é o paraíso dos direitos e condições de vida dos trabalhadores. O eixo da argumentação burguesa é a acusação da falta de liberdade nos países socialistas. Cuba, para os inimigos ideológicos do proletariado é uma ditadura, assim como o foi a URSS. Nessa linha, equiparam o socialismo ao fascismo e os comunistas com os nazis, acusando-os de crimes atrozes que só o capital seria e será capaz de cometer.
A expressão “totalitarismo” que entrou nos léxico político contemporâneo também continua a equiparar as ditaduras capitalistas aos regimes políticos socialistas. Segundo os ideólogos ao serviço do capital, nesses países seriam proibidos os partidos políticos e não haveria liberdade de expressão.
Vejamos o que dizem os artigos 14, 15 e 16 do capítulo V da II parte da Constituição soviética de 1918 aprovada pelo V Congresso dos Conselhos (Sovietes) de Toda a Rússia, ocorrido em 10 de julho de 1918, sobre a liberdade de expressão e outras liberdades:
14. «Com o objetivo de assegurar aos trabalhadores verdadeira liberdade de expressão de suas opiniões, a República Socialista Federativa Soviética Russa elimina a dependência da imprensa em relação ao capital e entrega nas mãos da classe trabalhadora e dos pobres do campo todos os meios técnicos e materiais, necessários à publicação de jornais, brochuras, livros e todas as demais produções impressas, garantindo sua livre difusão por todo o país.»
15. «Com o objetivo de assegurar aos trabalhadores verdadeira liberdade de reunião, a República Socialista Federativa Soviética Russa, reconhecendo o direito dos cidadãos da República Soviética à livre organização de reuniões, comícios, assembleias etc., coloca à disposição da classe trabalhadora e dos camponeses pobres todos os espaços úteis à realização de reuniões populares, com a respectiva mobília, iluminação e aquecimento».
16. «Com o objetivo de assegurar aos trabalhadores verdadeira liberdade de associação, a República Socialista Federativa Soviética Russa, tendo destruído o poder económico e político das classes possidentes e, desse modo, abolido todos os obstáculos que, até então, haviam impedido aos trabalhadores e camponeses de exercerem, na sociedade burguesa, a sua liberdade de organização e a sua liberdade de ação, proporciona assistência de ordem material e de outros géneros aos trabalhadores e ao campesinato mais miserável, nas suas atividades de unir e de organizar.» [2]
É falso que em todos os países socialistas só houvesse um único partido político. Na RDA, no período socialista, existiam cinco partidos e na Polónia existiram quatro e, além do partido comunista, participavam outros partidos no governo. Na China existem nove partidos políticos incluindo o PCC. O caso da Federação das Repúblicas Socialistas Soviéticas Russas é um caso com particularidades a explicar por que razão existia só um partido, o POSDR. Na realidade, após a revolução, o Partido Socialista Revolucionário (PSR) esteve no poder com o partido bolchevique. A sua saída deveu-se ao facto de se ter envolvido num atentado à vida de Lenine. Mas a existência ou não de outros partidos políticos nas democracias socialistas foi determinada pela situação política e histórica de cada país na época da revolução. De resto, não faz sentido existirem partidos a lutar pelo capitalismo numa democracia socialista e não é o número de partidos existente que confere graus de democraticidade à democracia, burguesa ou proletária.
No regime soviético as eleições eram livres, muito mais livres do que na democrática “democracia” burguesa. Os eleitores podiam votar em quem quisessem, escolhiam os seus representantes nas fábricas e nos campos, votavam naqueles que lhes pareciam os melhores dirigentes, os mais capazes, os mais honestos e melhores trabalhadores (em que país se encontram deputados do povo mais perto do povo?). Os sovietes, representantes de toda a classe operária e de todos os camponeses pobres, com ou sem partido, dirigiam o Estado. Em Cuba, são os cidadãos, em assembleias de base, que elegem os seus próprios representantes com ou sem partido até à Assembleia Nacional do Poder Popular. Não há campanhas eleitorais e o PCC não concorre enquanto partido, embora se assuma como a força dirigente da sociedade.
Na verdade, tudo o que não interessa à burguesia é anti-democrático e as formas de governo de determinados Estados são “regimes”. Esta palavra “regime” na comunicação social, fica então associada a algo negativo. Assim, não há um “regime” norte-americano, ou francês, ou alemão, mas há um “regime” sírio, um “regime” cubano e todos os países do antigo bloco socialista eram regimes “totalitários” ou “autoritários”. Todos os Estados que o imperialismo ocidental quer atacar têm regimes “totalitários”.
Este termo usado pela ideologia burguesa tem ainda uma decorrência mais subtil (ou nem tanto). Se na mente das massas, é óbvio que o nazismo e o fascismo eram regimes “totalitários”, aplicar o mesmo qualificativos aos países que são ou foram socialistas leva à inferência de que o socialismo é equivalente ao nazismo, ideia simplesmente criminosa e terrorista. Agarrando o proletariado pelos colarinhos com a imposição destas monstruosas mentiras, a burguesia diz ao proletariado que não deve almejar o socialismo porque o socialismo é uma ditadura.
Para as massas, “democracia” conforme lhes é infundido, é o triste espetáculo que umas pessoas, chamadas políticos, representam todos os dias no governo, na Assembleia da República e outras instâncias públicas, lavando roupa suja e escondendo os principais negócios e decisões se vão refletir por muitos anos na vida do país, servindo os interesses do capital e desprezando o interesse público.
«A república burguesa parlamentar dificulta e asfixia a vida política independente das massas, a sua participação direta na edificação democrática de toda a vida do Estado, de baixo para cima. [3]
Cada vez mais, o povo e os trabalhadores desprezam a democracia e a política, a que associam o exercício de um poder que invariavelmente está contra si. Relativizando o valor das sondagens, tenha-se em conta que, segundo uma delas publicada recentemente, «apenas 18% dos portugueses confiam nos partidos.» . «Por outro lado, 79% dos portugueses “tendem a desconfiar” dos partidos políticos»[4]. Faltando a perspetiva de uma democracia superior, uma democracia dos trabalhadores para os trabalhadores, uma democracia como poder da maioria da sociedade, o descontentamento vira-se para forças políticas fascizantes.
“Preconceito ideológico”
O “preconceito ideológico” é um conceito recentemente aparecido no léxico político. Este conceito assenta em algumas premissas: ter ideologia é mau; ter preconceitos, toda a gente sabe, também não é bom; todos os indivíduos que afirmem não ter ideologia estão certos; a política não deve ter ideologia, isto é, deve ser neutra em relação ao conjunto das classes que se apresentam em determinada sociedade.
A maior mistificação em que esta ideia consiste, tal como, aliás o conceito de “democracia” no sentido abstrato, é esconder que a ideologia burguesa existe. Mas ela é como o ar, não se vê mas respiramo-la a cada momento. No discurso da burguesia a “ideologia” é sempre de “esquerda”. Assim, defender os hospitais públicos e criticar o papel hospitais privados, por exemplo, é “ideologia” de esquerda. A ideologia de esquerda deve ser ostracizada porque impede uma visão mais vasta do mundo, largamente proporcionada pelo capital, como se sabe. Este apenas quer esconder dos trabalhadores a sua ideologia, as suas ideias tenebrosas, o que por detrás delas se esconde, o quanto reacionária é e escamotear o facto de a sociedade se dividir em classes e que é a burguesia que impõe a sua ditadura. A ideologia burguesa luta por impedir o proletariado de ter a sua mundividência de classe, a sua teoria e ciência revolucionárias e por isso a adjetivam de “antidemocrática”. Com isso, querem atrasar o mais possível a hora H em que o capital sairá da cena da história e chegará o poder dos trabalhadores.
A atual triste situação da democracia em Portugal
Durante o fascismo
No país amordaçado pelo fascismo a liberdade e a democracia eram condições imprescindíveis para que o proletariado pudesse livremente organizar-se em partidos, sindicatos, associações para prosseguir a luta pelos seus interesses de classe.
A palavra de ordem de “lutar por uma ordem democrática” era absolutamente justa e a falta de liberdade de organização e de manifestação de opinião apresentava-se como a maior dificuldade para a luta da classe operária pelo socialismo. Era um «passo necessário para alcançar os outros objetivos da revolução democrática».[5]
«A tarefa fundamental do Governo Provisório é a instauração das liberdades democráticas e a realização de eleições livres para uma Assembleia Constituinte» afirmava A. Cunhal no seu relatório ao VI Congresso do PCP e «[…] a destruição completa do Estado fascista e a instauração de uma ordem democrática» o 7º ponto do programa mínimo do PCP para participar num governo provisório saído de uma revolução que definia como democrática e nacional. A. Cunhal afirmava ainda que «A luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo socialismo»[5]
O 25 de abril e o “PREC”
Rapidamente a aliança Povo-MFA e a luta popular conseguiram direitos e liberdades como o povo nunca tinha conhecido.
Porém, aquela democracia não era abstrata no que se referia ao seu conteúdo de classe, tinha um conteúdo que correspondia aos interesses das classes e camadas cujos interesses seriam servidos com o fim do fascismo e tinha uma base económica: a abolição dos monopólios, e a Reforma Agrária e a libertação de Portugal do domínio imperialista estrangeiro.
Assim, a nacionalização dos principais meios de produção, o fim dos monopólios a realização da Reforma Agrária nos campos do Alentejo e Ribatejo, a liquidação do latifúndio, o controlo operário, a atuação das Comissões de Trabalhadores, a liberdade sindical, a liberdade de organização dos partidos políticos, entre eles o da classe operária, foram as bases materiais da democracia do 25 de abril. A revolução socialista terá na sua base outros objetivos ainda mais avançados.
Hoje, os papagaios do capital divulgam a sua “narrativa” da revolução de abril e dividem a história recente após o fascismo , (a que eles chamam Estado Novo para limpar o passado dos fascistas) em dois períodos: o PREC e a “democracia”. Segundo eles, a contrarrevolução do 25 de novembro reinstaurou a “democracia” (abstrata, isto é, a liberdade do capitalismo impor a sua ditadura de classe). No PREC, eles chamam às conquistas do 25 de abril um conjunto de desmandos - que nem explicitam para que ninguém se lembre ou para que as novas gerações ignorem - , desmandos que convém anatemizar para não serem repetidos, e incensam a liberdade e a democracia que regressaram na ponta das armas da contrarrevolução.
O PREC seria o tempo das desordens, dos roubos, da expropriação da propriedade privada em geral,
da ditadura comunista da qual, galhardamente, o 25 de novembro nos salvou. Essa “democracia” do 25 de novembro, como todos sabem, foi a que trouxe o desemprego, a fome, o encerramento de empresas, a destruição do aparelho produtivo nacional, o redobrar da submissão do país ao imperialismo, atentados às liberdades e direitos dos trabalhadores, alguns assassinatos, etc., tudo em nome da “democracia” contra a “ditadura” soviética que os comunistas quereriam implantar.
Nos sucessivos governos contrarrevolucionários. Democracia burguesa
Destruídas as bases da democracia revolucionária do 25 de abril, com as reprivatizações das grandes empresas, a venda ao estrangeiro das mais importantes empresas portuguesas, a destruição da Reforma Agrária, o domínio da comunicação social, os ataques legislativos e outros às organizações políticas e sindicais dos trabalhadores, regressou a democracia burguesa, isto é, a ditadura do capital.
A Constituição da República Portuguesa e a democracia
A primeira constituição de 1976, refletindo a relação de forças no campo político e social foi certamente a Constituição mais democrática e progressista registada em países não socialistas. Foi um reflexo da revolução. Nela se estatuía, em introdução, que a vontade do povo decidia «… abrir caminho para uma sociedade socialista», no seu artº 1º, que «Portugal é uma República soberana … empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes» e no seu 2º artº … que a República Portuguesa… tem por objetivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder das classes trabalhadoras» [6].
A contrarrevolução iniciou-se ainda a CRP não estava publicada, mas a dinâmica de massas prosseguia. Foram os primeiros governos constitucionais que começaram por atropelar a CRP.
Não cabendo aqui outras análises, apenas se quer sublinhar que a “legalidade” se impõe mais pela relação de forças no terreno da luta de classes, do que por leis no papel. Um pequeno exemplo: enquanto o artº 96 da CRP reconhecia a Reforma Agrária, considerando-a «instrumento fundamental para a construção da sociedade socialista», o ministro Barreto avançava com a GNR sobre os trabalhadores do Alentejo e Ribatejo para reiniciar a reconstrução dos latifúndios. Ou outro exemplo muito mais próximo: os professores têm direito à recuperação do tempo trabalhado, foi uma ilegalidade o governo ter determinado o corte nas promoções a todos os trabalhadores da Administração Pública. A luta desenvolve-se desde então e, no entanto, ainda não conseguiram obrigar o governo a repor a legalidade. Aqui está, mais uma vez, o sagrado cumprimento da lei.
Obviamente não é secundário ou pouco importante que a legalidade vigente esteja ou não do lado dos trabalhadores e que é obrigatório que estes reivindiquem o cumprimento das leis que lhes são favoráveis que os governos do capital não querem cumprir. Porém, nenhuma lei pode impedir a luta dos trabalhadores pelo socialismo. Os trabalhadores portugueses não podem deixar de lutar pelo socialismo porque não está na Constituição. A Constituição não é o marco delimitador da luta das massas.
A CRP hoje não é a CRP de abril. Sofreu alterações por sete vezes e vai a caminho da 8ª, ao longo das quais se foi banindo aquilo que lhe conferia um caráter democrático revolucionário: saiu o objetivo de caminhar para o socialismo, o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, a reforma agrária desapareceu do texto assim como a socialização dos meios de produção ou a gratuitidade do SNS (e muito mais).
Vem tudo isto a propósito da democracia dos dias de hoje e da definição que hoje fazem as organizações do movimento dos trabalhadores sobre a natureza do regime em que vivem os portugueses. As suas mais importantes organizações, sem mais, afirmam que vivemos num regime democrático e reivindica-se o respeito pela CRP de abril - que já não é a Constituição de abril. Dissemos atrás que as lutas populares devem reivindicar a aplicação das leis constitucionais que ainda os defendem e, por ainda conferirem direitos importantes aos trabalhadores, os governos não cumprem. É óbvio que sobraram as liberdades burguesas que existem em muito mais países capitalistas, mas pode proletariado ficar por aqui na teorização que faz da atual situação política e da respetiva tática e estratégia em função da democracia em que vivemos?
A resposta é um rotundo não.
A democracia na estratégia e tática do movimento operário
Em primeiro lugar, o movimento operário deve saber a diferença entre democracia burguesa - ditadura do capital – e a democracia proletária para não ficar agarrado à ideia de que temos de defender “regime democrático” e com isso defendermos a democracia/ ditadura burguesa. Temos de defender os princípios constitucionais favoráveis aos trabalhadores que os governos não cumprem.
Também não podemos atrelar o movimento operário à legalidade burguesa que os oprime. A luta do proletariado não pode terminar no regime constitucionalmente vigente, ficando atrás e a reboque da burguesia, tomando uma bandeira alheia, como dizia Lenine. Tem de ser dirigida para a conquista de uma democracia proletária que estará completamente nas suas mãos. Os trabalhadores devem perceber que, para além desta “democracia” podre que eles em geral abominam, existe a sua própria democracia de classe que tem se impor à ditadura burguesa.
Além disso, as organizações políticas e sindicais dos trabalhadores não se podem tolher a si mesmas por um legalismo pequeno-burguês que significa pactuar com o regime burguês e, logo, o abandono da ideia de revolução, a caminhar pelos trilhos do reformismo e caminhar pela aceitação do capitalismo “reformado”. Esse legalismo manifesta-se no fetiche da CRP, fazendo dela o objetivo estratégico ou mesmo um programa político do proletariado. É aflitivo o legalismo de que padecem essas organizações, a sua adaptação ao sistema capitalista e por ele tolerado porque, em certa medida, lhe é útil não o pondo em causa.
As soluções para o futuro não se encontram no passado. O conteúdo do 25 de abril é, hoje, o conjunto de liberdades burguesas e não a democracia revolucionária que saiu dele. Assim se explica a unanimidade em torno dessa data, que vai desde o PSD e o inefável senhor Presidente da República, até aos partidos de esquerda (não aceitando o qualificativo, usamo-lo para economizar palavras). É fácil para todos os portugueses, desde os exploradores aos explorados estarem de acordo com o 25 de abril, na medida em que é um 25 de abril recuperado pela democracia burguesa, expurgado do caráter revolucionário, que teve até ao início da contrarrevolução e da sua base material assente nas nacionalizações dos principais meios de produção, na Reforma Agrária, na luta de massas dirigida pelo seu partido de classe e, politicamente e militarmente, nos capitães de abril.
A contrarrevolução impediu o avanço do processo de abril a partir do momento em que ele poderia ir mais adiante, a caminho do socialismo.
O poder dos trabalhadores contém a democracia de classe que há-de ser plasmado numa constituição muito mais avançada do que aquela que saiu do 25 de abril, que preconizava o caminho do socialismo e ainda continha em si esse germe, mas que uma adversa correlação de forças foi modificando, criando uma legalidade diferente, de acordo com os interesses do capital.
O que se pode concluir daqui é que, sem a destruição do modo de produção capitalista, a infraestrutura da sociedade, a produção e a aplicação das leis a todo o momento é alterada ao sabor dos interesses do capital e da relação de forças.
Não se pode dizer simplesmente aos trabalhadores que é preciso defender a Constituição de abril, porque é falso que o seja. Se queremos as conquistas alcançadas com a revolução dos cravos e ir ainda mais além, para o socialismo, temos de fazer uma nova revolução e reprimir a burguesia que se vai levantar contra ela, tal como o fez no processo do 25 de novembro, implantar uma democracia socialista.
[5] A. Cunhal, Rumo à Vitória
[6]Porto editora 1990
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