(Este artigo publica-se em 4 partes, hoje publica-se a primeira) - 1/4
BREVE SÚMULA DE QUESTÕES
Não temos a veleidade nem a pretensão de falar de 100 anos de história do PCP, a criação mais valiosa da classe operária portuguesa. Excetuando os trogloditas ideológicos das forças de extrema-direita fascista e fascizante distribuídos por vários partidos, parece haver um largo consenso na sociedade portuguesa acerca do papel do PCP na história de Portugal, papel que assumiu logo a partir da data da sua criação. Com efeito, em 1921, na esteira da Revolução de Outubro, a classe operária portuguesa organizou-se politicamente em nome do poder para os trabalhadores, em nome do socialismo, e de imediato concitou contra si a burguesia republicana tendo-se instaurado de seguida uma férrea ditadura militar.
Há quem diga, e na nossa opinião corretamente, que o fascismo nasceu da necessidade de dar combate à crescente força organizada do movimento operário na Europa, em primeiro lugar, o primeiro Estado de operários e camponeses na URSS vitoriosa, no prelúdio da grave crise capitalista dos finais de 1929 e década de 1930.
Mas, esse consenso em torno da importância do PCP para a história do país e para a “democracia”, não é inocente. Não há “almoços grátis” e o inimigo de classe não dá tréguas. Trava-se uma luta de morte entre o capital e o trabalho incompatível com os elogios da comunicação social nas mãos dos capitalistas e com a inimizade de fundo e de facto de todos os que foram contra o PCP antes e depois do 25 de abril, os que iniciaram a luta contra as conquistas da revolução de abril e, em 25 de novembro, selaram a contrarrevolução que dura até hoje.
Como tudo o que é historicamente vivo, a vida do PCP ao longo de todos estes anos não foi linear. Foi umas vezes mais forte, outras vezes mais fraco, nem sempre teve uma orientação correta, houve erros, desvios, hesitações, correção dos erros, a par de um heroísmo coletivo e individual que nenhumas palavras podem descrever nem os encómios hipócritas mais rasgados podem refletir.
A gratidão dos explorados para com o PCP é verdadeira, a “gratidão” da pequena-burguesia é hipócrita. Reconhece a importância do PCP, porque a classe operária também libertou a pequena-burguesia do fascismo, mas quando as suas conquistas revolucionárias se achavam no auge a caminho do socialismo, os seus representantes, em aliança com a grande burguesia e o imperialismo, traiu-a, provocando a fratura no MFA que levou ao 25 de novembro.
O esquerdismo
É importante saber o conteúdo do que se define como “esquerdismo”. Nos textos de Álvaro Cunhal podem reconhecer-se situações da história do Partido em que se manifestaram ideias esquerdistas.
No início da história do PCP foi marcada pela a influência do anarco-sindicalismo na sua fundação. Os anarco-sindicalistas, organizados na única central operária, a CGT, vieram a engrossar o PCP e a sua influência ideológica fez-se sentir nas suas fileiras inevitavelmente. Porém, o anarco-sindicalismo trouxe a classe operária para o seio do Partido e marcou-o com o seu selo revolucionário e de classe, enquanto pela Europa os partidos comunistas nasciam de cisões de partidos socialistas que tinham traído a classe operária ao votarem a favor dos créditos de guerra que financiariam a guerra da sua burguesia nacional.
O anarco-sindicalismo, orientando a luta de massas exclusivamente para as reivindicações de âmbito sindical, recusando o derrubamento do Estado burguês como tarefa da classe, e usando como arma apenas a greve geral insurrecional, retirava da perspetiva da classe operária a sua principal tarefa: a tomada do poder, do Estado. Não servia, pois, para o cumprimento do papel histórico do proletariado.
A insurreição de 18 de janeiro de 1934 na Marinha Grande, momento alto da luta da classe operária contra a fascização dos sindicatos, travou-se no contexto de uma greve geral revolucionária pelo derrube do governo de Salazar, decretada pelos sindicatos, então sob a influência do anarco-sindicalismo. A jornada de luta não se concretizou por todo o país como se esperava e a vila operária ficou isolada, mas os vidreiros tomaram o poder por algumas horas. A greve foi considerada uma “anarqueirada” pelo então secretário-geral, Bento Gonçalves. Custou vidas e muitos anos de liberdade aos insurgentes, a fome e a miséria das suas famílias. No entanto, glorificamos, e muito bem, os seus heróis e todos os anos o acontecimento é comemorado como símbolo da coragem e feito histórico da classe operária portuguesa.
Houve outro momento na história do Partido em que se pode dizer que existiram ideias esquerdistas que, contudo, não afetaram a linha do Partido nem os seus principais quadros. Surgiram tais posições por ocasião do conflito sino-soviético, na década de 60 do século XX. Houve membros do Partido que abraçaram a linha política do Partido Comunista Chinês, o maoismo, e deram origem à FAP e aos movimentos de “reconstrução do partido do proletariado”, ditos m-l (marxistas leninistas) cuja influência dificilmente saiu das paredes das universidades e escolas. Chama-se, no entanto, a atenção para o facto de, na URSS, depois da morte de Estaline e com a realização do XX Congresso do PCUS, se ter dado naquele partido uma guinada à direita, da qual praticamente não recuperou até à derrota do sistema socialista; e para o facto de a China se ter envolvido então na “revolução cultural” e tido comportamentos com consequências nefastas para a sua revolução e o MCI. Estas dois desenvolvimentos criaram complexos problemas ideológicos (e políticos) de repercussões históricas, como agora se pode constatar.
Esses grupos então formados são normalmente chamados “esquerdistas”. Porém, dado o seu papel no combate à única força que consequentemente combatia o fascismo, o PCP, antes e depois do 25 de abril, mais propriamente se poderiam classificar como fazendo o jogo da direita.
Pelo Partido também passaram tendências que, descurando completamente o papel das massas, iam no sentido de defender o derrubamento do fascismo através de golpes militares putshistas, tendência que não existiu apenas no Partido enquanto manifestação de opinião, mas sobretudo no campo democrático republicano e militar, tendência que começou a manifestar-se praticamente a seguir à implantação do fascismo conhecida como “reviralhismo”. Várias vezes A. Cunhal interveio criticando esses métodos e os prejuízos que traziam à unidade do campo democrático e antifascista.
A. Cunhal também criticou e demarcou o PCP das tendências e grupos esquerdistas no seio do MFA, que contribuíram para a sua divisão.
São também, por vezes, considerados esquerdistas os grupos que promoveram as greves contrarrevolucionárias na TAP e nos TLP (correios e telecomunicações) e posteriormente a ocupação da Rádio Renascença e o assalto ao jornal República ocorridas logo após o 25 de abril com o objetivo de minar a revolução. Sabe-se, porém, que essas ações provocatórias eram promovidas pelos inimigos jurados do 25 de abril de “esquerda” e de direita, com o objetivo de fazer reverter a revolução e dar espaço a um golpe de direita.
De alguns anos a esta parte, colou-se o rótulo de “esquerdistas” aos membros do Partido fiéis, na prática e na ideologia, aos ensinamentos do socialismo científico e à natureza leninista do Partido e criticaram e criticam o desvio socialdemocratizante e o seu oportunismo político e ideológico. Citou-se abundantemente Álvaro Cunhal e Lenine e as suas obras Esquerdismo, doença infantil do comunismo e O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista que abordaram o problema de uma forma completamente justa e distorceu-se as suas ideias ao aplicá-las em contextos não autorizados pelos textos, para que se ajustassem ao perfil dos “esquerdistas”. Infelizmente, esta atitude é comparável à de alguém que está dentro de um comboio: não é o comboio que avança, é a paisagem que anda para trás. Isto é, os que singram pelas ferrovias do desvio de direita, veem os outros a avançar pelos carris da esquerda.
Tratava-se e trata-se de exigir uma atuação do partido da classe operária à altura da classe que é suposto dirigir, da sua história gloriosa e da tarefa que a classe tem de cumprir – varrer o modo de produção capitalista – tarefa que só pode ser cumprida revolucionariamente. E não basta falar, retoricamente, de “superação revolucionária” do capitalismo quando nada se faz para preparar a revolução, muito pelo contrário, se a afasta.
Desvios de direita
Na história do PCP é reconhecido um desvio de direita nos anos 56-59 que foi adotado pelo V Congresso e posteriormente corrigido pelo seu VI Congresso, em 1965 que abriu o caminho ao 25 de abril. Esse desvio consistiu, entre outros aspetos, em considerar possível o derrubamento do fascismo por via pacífica e em alienar o papel das massas nesse derrubamento, como se existisse uma espécie de automatismo no regime que o desagregaria por si próprio irreversivelmente. Paralelamente, caiu-se no desvio a que A. Cunhal viria a criticar em A tendência anarcoliberal na organização do trabalho de direção.
Estas ideias procuraram a sua justificação do XX Congresso do PCUS que considerava que a alteração da relação de forças no mundo, com o crescente poderio do campo socialista e com o seu alargamento, se tinham formado condições que possibilitariam a transição pacífica do capitalismo para o socialismo, por via eleitoral, em regimes de democracia burguesa.
Apesar de assumir essas teses e de não as contestar, A. Cunhal defende que não eram aplicáveis ao caso do fascismo, o qual só poderia ser derrubado com uma insurreição popular armada, conquistando uma parte considerável das forças militares. A história demonstrou que esta posição era correta.
No final da II Guerra Mundial, tinham-se também manifestado no PCP ideias oportunistas quanto ao derrubamento do fascismo. Assentavam elas nas ilusões criadas com a vitória dos aliados. Ficou claro para o mundo o papel da URSS nessa vitória. As grandes massas europeias libertadas do nazismo pelos soviéticos reconheceram o seu papel, evidenciou-se o papel dos partidos comunistas em cada país na vitória contra o fascismo e o nazismo, cresceram e prestigiaram-se os partidos comunistas. Fator também a ter em conta foi aliança de setores das burguesias nacionais com a classe operária nas frentes populares, tática assumida pelo VII Congresso da Internacional Comunista. Nessa sequência, alguns partidos comunistas participaram mesmo em governos burgueses depois da guerra como aconteceu em França. Está hoje em discussão no MCI o acerto dessa tática, tendo em conta as ilusões a que deu origem na classe operária e nas massas quanto à possibilidade de um caminho menos duro para o socialismo, a evolução oportunista de vários partidos comunistas e o baixar da guarda da classe revolucionária e seus aliados face à burguesia, inimigo de classe.
Neste ambiente ideológico apareceu, ainda à data do II Congresso ilegal (IV Congresso – 1946) o conceito “política de transição” que apresentava dois caminhos para o derrubamento do fascismo. Eram eles, «1º Provocar a desagregação do governo no regime de transição; 2º Levar a cabo um golpe militar» 1. A. Cunhal liga «a política de transição» à «desagregação irreversível» assumida pelo V Congresso, considerando os dois conceitos como o prolongamento um do outro. Na verdade, ambas recusavam a necessidade de meios mais ou menos violentos para o derrubamento do fascismo, defendiam uma mudança pacífica do regime, não denunciavam nem traçavam o objetivo de destruir as bases materiais, económicas do fascismo, relegavam a força material mais importante para esse feito, o levantamento das massas, não as educavam, preparavam e organizavam para esse fim e a sua ligação a uma intervenção progressista de setores militares. Em suma, escolhiam o caminho mais fácil que, porém, era impossível e levaria à derrota. Ambas apontavam para a realização de um golpe militar que não estava ao alcance do movimento de massas realizar, que não dependia da evolução das suas forças, deixando nas mãos dos militares sublevados (às vezes imaginariamente) a condução do processo.[1]
Nos anos 80 e 90 afloraram dentro do PCP grupos que pretendiam aniquilá-lo: o Grupo dos 6, a “Terceira Via” e o “Novo impulso”, que ficou conhecido como os “renovadores”. As teorias destas três ondas sucessivas, para resumir, defendiam a “renovação” do Partido com o abandono das formas leninistas de organização interna, uma tática de alianças com o PS, o parlamentarismo como forma de intervenção e o abandono dos objetivos estratégicos do PCP. Em suma, a redução do partido a uma organização socialdemocrata reformadora do capitalismo, sonho centenário da burguesia.
Claro que a burguesia não se limitava a sonhar e, pragmática que é, não deixou de tomar as suas medidas e de as levar à prática.
(Continua)
[1] Cunhal, A., Obras Escolhidas, ed. «Avante!», tomo II, Lisboa, 2008, p. 558
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