(Este artigo publica-se em 4 partes, hoje publica-se a segunda) - 2/4
Em que consiste o atual desvio socialdemocratizante, de direita, do PCP
A vida, a história, a ação revolucionária, mais adiante, não sabemos quando, se encarregará inevitável e necessariamente de considerar como “desvio de direita” o rumo que o partido está a tomar há já muitos anos, já que este, por ora, rejeita tal qualificação da sua ação política e dos seus posicionamentos ideológicos. O que a seguir se diz é obviamente uma súmula muito limitada.
1. Programa
Objetivos estratégicos
O Programa do PCP define os seus objetivos estratégicos como o socialismo e o comunismo. Contudo, tais objetivos aparecem desligados da sua linha tática que aponta o projeto de uma “democracia avançada”. A história não apresenta nenhuma formação social, económica e política que a autorize como objetivo tático. O socialismo científico, com provas na história, não concebe a existência de qualquer formação sócio-económica intermédia entre o capitalismo e o socialismo. A ideologia marxista-leninista, a filosofia materialista dialética e a economia política marxista consideram e demonstram ser impossível uma formação económica e social intermédia entre os dois sistemas de produção (coisa diferente é, por exemplo, no socialismo, subsistirem ainda relações capitalistas de produção durante largo tempo). Marx ocupou muitos anos da sua vida a demonstrá-lo teoricamente em O Capital e a Revolução Russa confirmou a correspondência das suas teses com a realidade, provou que eram verdadeiras. Resumindo, a “democracia avançada” não existe, é uma construção mental, é metafísica.
A tática e as vias
A “democracia avançada” seria uma etapa da construção do socialismo. O caminho para o socialismo começaria numa “alternativa de esquerda” que aplicaria uma “política democrática e patriótica” que, por sua vez, permitiria chegar (como?) à “democracia avançada”, primeiro passo para o socialismo que se desenvolveria até ao comunismo. Como atrás foi dito, nenhum processo histórico real tendo como motor a luta de classes se desenrola dentro deste esquema utópico sem correspondência com a realidade. O Programa afirma mesmo que o socialismo se encontra em aprofundamentos graduais da democracia.
Daqui decorrem outras questões. Uma é a de saber o modo como uma etapa se transforma na outra. Se o socialismo corresponde a uma mudança qualitativa no processo histórico, a passagem de um modo de produção a outro, ainda para mais quando se trata de passar da sociedade classista milenar para o início da formação da sociedade sem classes, não se percebe aqui qualquer “salto”. O processo histórico apontado é uma sucessão de mudanças quantitativas na sociedade a que se reporta, isto é, reformas sucessivas no capitalismo.
A revolução está desaparecida em combate nesta construção mental, por mais que se fale em “superação revolucionária do capitalismo”, seja lá isso o que for na cabeça das pessoas que se lhe referem. Mas é também é um conceito plasmado no Programa. Por um lado, esta “superação revolucionária” é contraditória com o processo gradualista que se aponta. Por outro, a referência, que é puramente demagógica, à “superação revolucionária”, está completamente desligada do trabalho de massas, da sua organização, preparação e educação para a “superação revolucionária”. Isto é, enquanto se diz que só a superação revolucionária do capitalismo pode conduzir ao socialismo, não se preparam, educam e organizam as massas para esse objetivo.
A segunda questão prende-se com a forma que assume a passagem do capitalismo ao socialismo. A via que o PCP preconiza é a de uma transição pacífica. Aliás, contraditoriamente o Programa ao mesmo tempo que fala em “superação revolucionária do capitalismo” afirma que a via portuguesa para o socialismo é o “da luta para o aprofundamento da democracia”. Obviamente que toda a gente está de acordo em que a passagem ao socialismo se realize com o menor sofrimento possível para as massas, mas o inimigo de classe nunca cederá sem luta a sua posição e isso acarretará alguma espécie violência. Mas a violência da revolução proletária não é terrorismo, o grande capital, esse, promove diariamente o terrorismo em geral e o de Estado em particular.
Diríamos que, numa situação hoje mais complexa (mas não menos difícil) - porque não se trata de destruir o regime fascista que o 25 de abril destruiu há muito, mas das tarefas para a revolução socialista - esta “democracia avançada” é comparável à “política de transição” e à “desagregação irreversível”. Com elas compartilha o impossível caminho fácil de não considerar o confronto direto com o poder do Estado burguês e de desvalorizar, de não medir a amplitude e a qualidade da intervenção das massas necessária a esse enfrentamento, de fazer depender de outrem, as tarefas que a classe tem de resolver.
A questão do Estado
Na “democracia avançada” a questão da tomada do poder do Estado nem sequer é colocada, nem poderia sê-lo uma vez que o Programa defende uma transição por graus ou etapas (sem mudança de qualidade). O Programa fala de uma nebulosa “alteração de forças” e da intervenção da luta de massas, mas não diz qual o encaminhamento dessa luta. É uma luta abstrata ou é uma luta reivindicativa, sindical, sem objetivos políticos, de poder. A alteração da relação de forças fora da luta de massas não será outra coisa senão a relação de forças no parlamento. Se a luta não for objetivada para o poder político do proletariado nunca poderá sair do âmbito do Estado burguês.
Lenine considerou que “O Estado [é a] questão central da revolução” e A. Cunhal que o “Estado [é] a questão central de cada revolução” O que define a revolução é a passagem do poder de Estado de uma classe para outra (nas revoluções burguesas, como a francesa, o poder foi arrancado à aristocracia e passou para as mãos da burguesia). Na revolução socialista o Estado é arrancado à burguesia e passa para as mãos do proletariado.
No PCP não existe esta compreensão do Estado e da sua natureza de classe. O Estado é concebido como uma instituição sem natureza de classe que tanto poderia servir os interesses do capital como os dos trabalhadores se fosse reformado.
O Estado é sempre o poder organizado de uma classe para impor a sua ditadura às outras. Este “Estado” do Programa do PCP é um Estado cuja natureza de classe não está definida, é, numa interpretação benevolente, um Estado imaginário, inventado – impossível, - , ou é o Estado burguês reformado. Uma classe nunca entrega o seu poder, objetivado no seu Estado, sem resistência, daí a necessidade da revolução.
2. A deficiente ligação às massas
Uma pedra de toque de um partido comunista revolucionário é o grau da sua ligação às massas. Os quadros educados pela geração dos dirigentes do PCP que asseguraram a vida do partido e o desenvolvimento da luta de massas durante quase meio século de ditadura fascista apreenderam bem o seu valor e a ele devem o seu êxito político.
A ligação às massas é um processo de dois sentidos: o de levar às massas a ideologia de classe, aprender com elas, auscultar-lhes a vontade e devolver-lhes, política e ideologicamente elaborada, a perspetiva para a sua luta. A árvore mergulha as suas raízes no solo, o partido proletário nas massas.
À data da comemoração do 100º aniversário, este processo funciona com muitas deficiências. Abordar-se-ão apenas três questões. A primeira prende-se com o facto de se ter rejeitado a perspetiva leninista de que o papel do partido de classe é educar as massas e ser a vanguarda da classe operária. Isto decorre do reformismo na estratégia e na tática. Como a revolução está fora do horizonte, então não é necessário elevar política e ideologicamente a classe e as massas ao patamar correspondente. O capitalismo reformado não precisa da intervenção política das massas, antes pelo contrário. A ideologia burguesa encarregou-se de ridicularizar o conceito “educação das massas”, portanto, o melhor é considerá-lo desatualizado e esquecê-lo, mas não foi esta a cultura política que os dirigentes históricos legaram ao PCP.
A segunda questão é a da violação dos princípios do centralismo democrático na vida interna. São os militantes do partido que fazem chegar à direção o sentimento, as aspirações dos trabalhadores e, em sentido inverso, são os militantes que fazem chegar aos trabalhadores as orientações do partido e a ideologia de classe. O que se tem passado é que a direção prescinde das opiniões dos militantes, prescinde de, por seu intermédio, conhecer a opinião e o sentir dos militantes e das massas. Decorre daqui que não se pode aferir a correção da linha política através da prática, não se aprende com os trabalhadores e o povo, é interrompido o processo dialético massas-vanguarda. Adiante abordaremos outras vertentes desta questão.
Chegamos à terceira questão. Da interrupção da relação dialética vanguarda-massas e do reformismo da linha política, decorre 1) o sistemático atraso das palavras de ordem em relação à disposição de luta dos trabalhadores e ao seu nível de compreensão da situação política; não se trata de um afastamento das massas e da classe por voluntarismo, por sectarismo, por vanguardismo, mas pela razão inversa, o reformismo, o atraso em relação à classe e às massas que faz perder sentido à qualidade de vanguarda 2) o aprofundamento do descontentamento dos trabalhadores e do povo não encontrar na sua vanguarda aquilo que esperavam, aumentando o perigo da procura de saídas em forças de extrema-direita.
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