Entendimentos com o PS e apelo ao regresso de “renovadores” que se afastaram
Na entrada em funções do novo secretário-geral do PCP foram dadas várias entrevistas a órgãos de comunicação social em que ele teve oportunidade de manifestar o seu pensamento político. Claro que, nessa qualidade de secretário-geral, não deu as suas opiniões pessoais, mas, pelo menos as da direção do seu partido. E essas opiniões, nas várias entrevistas, refletem um evoluir e uma clarificação de posições relativas à linha política do PCP, mais explícitas, até, em relação às expressas pelo anterior secretário-geral.
Pode dizer-se, e é verdade, que essas opiniões respeitam a linha aprovada no XXI Congresso e até de congressos anteriores, mas daí só pode concluir-se que essa linha não só estava errada, como continha nas entrelinhas, em potência, as interpretações que, agora com mais clareza, são expressas pelo atual secretário-geral.
E essa interpretação foca-se agora em três direções que não tinham antes sido mencionadas e explicitadas: a abertura ao regresso dos “renovadores” - aqueles membros do PCP afastados, por decisão própria ou sanção disciplinar que queriam subverter a natureza de classe do Partido, podemos acrescentar, que traíram o Partido; e a abertura de portas a futuros entendimentos com o PS com vistas à governação do país. A terceira direção, que referiremos adiante é a linha política do PCP na qual o PS desempenha um papel de protagonista.
Essas três componentes não podem ser dissociadas. Abrir a porta aos “renovadores” não é uma atitude de “bondade” perante pessoas que até já participam em atividades do PCP, como refere PR, uma atitude de esquecimento e perdão pelos atos do passado. Um partido revolucionário de classe não pode descer ao nível do cristianismo, que recomenda dar a outra face a quem desferiu a primeira bofetada. Dentro de um partido marxista-leninista, as pessoas que erram podem mudar e evoluir se fizerem uma autocrítica e mudarem o seu comportamento, o que manifestamente, não é o caso dos “renovadores” ainda no “ativo”. Sem autocrítica sincera e leal, é o Partido que se submete à influência ideológica deles e não o inverso.
Foi depois “esclarecido” que não deveriam contar com uma transformação do PCP, o qual se manteria inabalavelmente fiel aos seus princípios, mas continua escrito e não desmentido que «...uma parte delas [as pessoas que saíram do PCP] faz cá muita falta porque as suas opiniões são válidas para construir um partido que nós queremos mais forte»1 [relevo nosso], declarou.
Posteriormente vem a saber-se que o apelo ao regresso se dirige também àqueles que ficaram “zangados” com o fim da “geringonça”, responsabilizando o PCP por esse divórcio e aos que, imbuídos de ideologia burguesa discordaram da posição do PCP em relação à guerra imperialista na Ucrânia. Isto não se pode aceitar, ou, de outro modo, só é aceite porque o PCP está transformado numa panela onde tudo cabe: tudo o que seja ideologicamente degenerado e a caminhar para o desvio de direita, ou para a social-democratização do PCP. A ideologia burguesa e pequeno-burguesa infiltra-se a cada instante na ideologia partidária. E só se fôssemos tolos é que não veríamos que existem mecanismos, devidamente organizados, virados para a destruição, por todas as vias, a ideológica incluída, dos partidos comunistas, como aconteceu em Espanha, na França, na Itália, ou na União Soviética.
Abrir as portas a traidores do Partido, chamar os que ficaram descontentes com o fim da “geringonça”, rebaixar-se ao PS são três atitudes inseparáveis que revelam o estado de decomposição do PCP.
Um partido que não renegue a sua natureza de classe e a sua missão histórica, tem de lutar todos os dias pela unidade ideológica no seu seio através da educação marxista-leninista dos seus militantes e quadros, contra a ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Para quem não sabe ou já se esqueceu, unidade ideológica é o oposto de unanimismo e imposição de opiniões únicas.
Avaliação dos resultados da “geringonça” e da “nova fase da vida nacional”
Uma das razões pelas quais o novo secretário-geral do PCP justifica a perspetiva de um novo entendimento com o PS é a avaliação positiva que o partido faz da experiência de um entendimento com o PS na base de uma posição subalterna do PCP.
Só para falar do aspeto eleitoral e institucional da questão, tal entendimento levou a um drástico enfraquecimento do PCP na Assembleia da República, nas autarquias e nas eleições para a presidência da República. Para fazermos um pouco de história, relembremo-nos do acordo feito com o PS para a Câmara de Lisboa, em que a CDU parte como a força com o maior número de votos, a maioria de presidências de Juntas de Freguesia, como maioritária na assembleia Municipal, cede a presidência ao PS e, anos volvidos, constata uma nítida perda de influência junto da população da cidade, mesmo quando os fatores objetivos ainda não tinham o peso que têm hoje (alterações sociológicas, destruição do aparelho produtivo da cidade, terciarização, etc.).
Nas suas entrevistas, o secretário-geral continua a achar que a experiência foi positiva e até que o PS foi mais longe do que pretenderia condicionado que estava pela pressão do PCP; a achar que esse entendimento a que voltou a chamar “nova fase da vida nacional” permitiu recuperar direitos, estabelecer novos direitos, abrir caminhos a políticas necessárias, instituiu a gratuitidade das creches e dos manuais escolares, o passe social para os transportes nas áreas urbanas, repôs feriados e rendimentos, entre outras benesses1. Entre todas elas não figurou o que era decisivo, precisamente, para os trabalhadores: o aumento dos salários e pensões, a alteração da lei da contratação coletiva, restabelecimento do princípio do tratamento mais favorável, o fim da precaridade. Isso sim, representaria um avanço dos trabalhadores e um recuo para o patronato.
Quanto ao aumento dos salários e pensões, o que o PCP “conseguiu” e de que se gaba, não tirou ninguém da pobreza nem da miséria – pergunte-se a qualquer trabalhador ou pensionista. Nunca, na “nova fase da vida nacional”, o patronato foi confrontado, os lucros escabrosos dos monopólios foram tocados ou a independência nacional defendida face à rapina imperialista perpetrada pela UE sobre o nosso país.
Um Partido de classe, revolucionário, marxista-leninista e internacionalista, não é um negociador social, não é um sindicato ainda por cima fraco, que considera boas as migalhas que o PS “deu” para obter a aprovação de dois orçamentos de Estado. Um tal partido existe para elevar a consciência política das massas ao nível da luta pela revolução socialista criadas as devidas condições objetivas e subjetivas. As condições objetivas não dependem só da classe e do partido de classe, mas as condições subjetivas, essas, dependem só e apenas desse partido de vanguarda da classe.
O novo secretário-geral e a direção do PCP não sabem nem querem medir as consequências dessa “geringonça” traduzida no atraso histórico provocado na consciencialização das massas e no enfraquecimento da sua luta.
O PCP submete-se ao PS e continua a afastar-se da luta pelo socialismo
A terceira direção em que as declarações do novo secretário-geral abrem o jogo em relação às ideias implícitas nos documentos programáticos e de orientação é aquela que se refere à linha política geral do PCP, ou se quisermos, à tática. Paulo Raimundo fez afirmações que, não levando mais longe o que consta desses documentos, em si altamente problemáticos, desvendam claramente o sentido neles contido, e dá passos políticos em frente nos “desafios” que lança ao PS.
Na entrevista que deu ao DN2, PR afirma que o PCP “propõe” uma alternativa patriótica de esquerda – como, de resto, há muito “propõe” - e considera que “o PS não pode estar de fora desta solução”. Parece ser a primeira vez que, explicitamente (implicitamente está tudo mais que dito nos documentos de referência) o PCP integra o PS na sua “política patriótica e de esquerda”.
O PCP “propõe” uma política alternativa “patriótica e de esquerda”. Qual o conteúdo desta palavra “propor” ? Lamentamos ter de chegar ao ABC da política para responder à questão. P.R. e a direção do PCP não sabem que as reivindicações, sejam elas de natureza sindical, sejam de natureza política, neste caso por maioria de razão, não se resolvem com “propostas”, mas apenas pela força, com a luta de classes? Não sabem eles que o PS se ri nas costas do PCP exposto a tamanhos disparates dos seus dirigentes máximos quando estes lhe “pedem batatinhas” no quadro de uma maioria absoluta que o PS tem na Assembleia da República e um PCP enfraquecido e não apenas no plano eleitoral? Por que haveria o PS, partido da burguesia, de atender às “propostas” dos fracos e, quiçá, ingénuos representantes do inimigo de classe (o inimigo de classe do PS são os trabalhadores e as suas organizações)? Não sabe qualquer dirigente sindical, por mais atrasado que seja política e ideologicamente, que só se conseguem aumentos salariais se o patronato tiver medo da força dos trabalhadores ou não tiver forças para lhes resistir?
É evidente que a teoria da alternativa “política democrática e de esquerda”, no quadro do regime – democracia burguesa, ditadura da burguesia - e do sistema – capitalista - em que vivemos e neste momento histórico, coloca politicamente os trabalhadores num plano de dependência do PS: só existe se o PS quiser, porque o partido dos trabalhadores, por si só, não tem força institucional que chegue para impor qualquer política a favor dos trabalhadores. A “proposta” só serve para o inimigo troçar de nós, porque sabe melhor do que aqueles que se apresentam como partido dos trabalhadores, que apenas a força resolve os problemas políticos da luta de classes. Tudo o mais é palavras que o vento leva e areia para os olhos daqueles que só por si mesmos têm de se emancipar.
Esta dependência começa no plano da teoria e prolonga-se na prática política. Estão ausentes as palavras de ordem independentes da classe trabalhadora, isto é, a luta pelos interesses políticos de classe, próprios e específicos, e de mais nenhuma outra.
P. Raimundo, na entrevista ao DN de 09.01.2023 afirma que o PCP não só não exclui fazer parte de um governo (com o PS, claro, no momento não existe nenhuma outra hipótese e exclui-se que seja com o PSD) como “tem a legítima pretensão formar um governo”. Não sabemos se ele tem a noção do que está a dizer. No que toca a um governo com o PS está claro do que se trata. É o PCP ter ministros ou secretários de Estado num governo do PS, partilhar com ele a política de gestão do capitalismo, ser a sua bengala e o seu instrumento para jugular a luta dos trabalhadores. Formar governo sozinho, nas atuais circunstâncias políticas e históricas, mesmo se conseguisse ser eleitoralmente maioritário, é admitir que o PCP estaria num governo para fazer a política do capital, a mesma que fazem o PS e o PSD em conjunto ou separado, porque não poderá fazer outra no quadro da existência de relações de produção capitalistas. Será que o secretário-geral de um partido que se reclama comunista não sabe qual a diferença entre o poder no sistema capitalista, o poder da burguesia, e estar no poder na sequência de uma revolução socialista em que necessariamente se quebram as relações de produção capitalistas e os trabalhadores acedem ao poder? É a pergunta mais benévola que podemos fazer, porque, em alternativa, é saber ele muito bem qual é a diferença e escolher a primeira hipótese. Não existe terceira via e a “democracia avançada” é uma miragem.
A linha da política “patriótica e de esquerda” que o PCP defende coloca-o na dependência da vontade do PS, só será viável se o PS quiser. E, para o PS, o PCP só lhe serve para obter maiorias absolutas, ou de bengala quando só tem maioria relativa, como aconteceu agora e já tinha acontecido na Câmara de Lisboa. Por isso dizemos que o PCP se coloca na dependência política do PS ou, em termos de classe, que a classe operária fica na dependência da burguesia com tal “alternativa”; que se arrasta na cauda da burguesia, como se expressavam os teóricos fundadores do socialismo científico.
Como o PS defende o capitalismo com unhas e dentes, coisa que não é necessário demonstrar, jamais haverá qualquer política “patriótica e de esquerda”, tanto mais que o PCP fica na atitude de “propor” à sociedade e ao PS. As propostas são ou não aceites, é o que a palavra quer dizer, e as “propostas” políticas do PCP não o serão decerto junto do PS.
Em resumo, quem não quer mudar a sociedade capitalista “propõe”, quem quer alcançar o socialismo destruindo o capitalismo, luta por isso.
A unidade do Partido
Alguns militantes podem ser tentados a interpretar o apelo ao regresso de “renovadores” pela necessidade de unir e reforçar o Partido. É essa a justificação dada pelo Secretário-geral e por consequência, pela direção.
É preciso desmistificar este raciocínio e refletir sobre as consequências deste apelo.
Em primeiro lugar, o Partido não está unido. Para estar unido seriam necessárias várias condições que não se verificam. Democracia interna não existe, como temos vindo a insistir. Os militantes sabem que as reuniões, quando as há, só servem para transmitir as opiniões dos organismos superiores. Debate político-ideológico não existe. Quem discutiu a aliança com o PS na “geringonça”? Quem discutiu os apelos ao PS para uma nova aliança institucional? Quem discutiu o apelo ao regresso de traidores do Partido? Opiniões expressas pelos militantes são ignoradas. Os militantes que discordam seja do que for, desde a mais simples questão até à linha política, são afastados. A organização desfaz-se, porque muitos militantes se vão afastando por muitas razões: ou não sentem utilidade na sua participação – a sua opinião não conta - , ou porque se sentem perseguidos, ou porque não sentem o Partido como o lugar onde se luta pelos ideais mais nobres. A aparente unidade é só unanimismo imposto ou consentido.
Inseparável da democracia interna, do centralismo democrático, é a linha política. Um partido revolucionário, que luta pelo socialismo, age internamente em conformidade com os princípios do centralismo democrático, indispensáveis à unidade férrea do partido para derrubar o capitalismo. Um partido absorvido pelo sistema, um partido socialdemocratizado, que não combate o capitalismo, que luta apenas por uma política “patriótica de esquerda” e apela a alianças com o PS, não precisa de centralismo democrático e não é democrático.
«A unidade do Partido fundamenta-se na justeza da análise da situação e na justeza dos seus objetivos e da sua orientação política» e «A unidade fundamenta-se na assimilação e na educação ideológica marxista-leninista», diz Álvaro Cunhal em O Partido com paredes de vidro (pp. 231 e 233).
Um objetivo político claro, revolucionário, junta muitas forças, mobiliza muita gente, gera força moral e anímica. Uma “alternativa patriótica de esquerda”, uma “democracia avançada” não mobilizam ninguém. Quem é que já ouviu ou viu, na luta de massas, palavras de ordem pela “alternativa patriótica de esquerda” ou pela “democracia avançada”? Quem é que conhece o conteúdo destas construções mentais sem pés assentes na realidade?
A atividade política interna desenvolvida por aqueles que quiseram destruir o partido por dentro, dividiu o Partido. O XIX Congresso uniu os comunistas contra eles. Quem os chama de novo estaria a dividir um partido revolucionário, se fosse este o caso. Mas como não é, o regresso desses elementos carreará para o interior do Partido uma ainda maior quantidade de tralha ideológica pequeno-burguesa e burguesa diluindo cada vez mais os objetivos da luta de emancipação do proletariado e enfraquecendo o Partido.
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