A situação nacional
Comecemos por citar uma passagem introdutória ao capítulo 2 das Teses, “O Portugal em que vivemos e intervimos”:
«Meio século [sublinhado nosso] depois do 25 da Revolução de Abril, a vida nacional é profundamente marcada pelo aprofundamento da política de direita e pelo processo de integração capitalista na UE. Uma política de restauração monopolista que marca o processo contra-revolucionário em confronto com a Constituição da República, com os valores de abril os interesses do Povo e do País e que tem como consequências o aumento da exploração, da concentração da riqueza, das desigualdades e das injustiças, da dependência e subordinação externas».
É bom que se sublinhe que o 25 de abril já foi há cinquenta anos. Meio século é muito tempo na história de um país, de um povo e do mundo. Aparecem certas análises e afirmações nas teses, em documentos em intervenções de dirigentes, que parece traduzirem um hiato de realidade nalgumas cabeças. Se estamos lembrados, na década de 80, há cerca de 40 anos, após governos sucessivos de PS e PSD e alianças governamentais para todos os gostos destes partidos da burguesia e do capital, o poder político e económico do capital monopolista foi totalmente restabelecido. À exceção da CGD, da TAP e da EPAL, se bem nos lembramos, todas as empresas e bancos nacionalizados no processo revolucionário foram completamente privatizados. As liberdades dos trabalhadores e do povo foram fortemente cerceadas. A Reforma Agrária acabou há mais de 40 anos.
Os sucessivos Congressos do PCP foram registando e descrevendo todos os aspetos da contrarrevolução em Portugal no plano económico, político, etc. O XII Congresso faz um balanço rigoroso de toda a recuperação capitalista até ao momento e sente necessidade de adotar um novo programa. É pena que esse programa tivesse enfermado de erros que constituem os grandes desvios hoje contidos na estratégia e na tática do PCP.
Não se pode descrever e explicar a ofensiva capitalista atual como sendo a continuação do processo contrarrevolucionário iniciado em 25 de novembro como se ainda hoje continuasse. Enquanto existir capitalismo a ofensiva burguesa só termina quando o proletariado tiver forças suficientes para vencer. Tal análise do processo histórico está petrificada.
A restauração monopolista está concluída há pelo menos quatro décadas, não apresenta hoje qualquer novidade. O facto de a TAP ou EPAL continuarem a ser públicas não retira validade à constatação de que o processo foi concluído. Outros processos da ofensiva do capital se iniciaram.
A burguesia não ambiciona concluir um “processo contrarrevolucionário”- fantasma qual moinho de D. Quixote; a burguesia, sob qualquer qualificativo que se atribua à sua ação política, quer desesperadamente manter-se no poder para continuar a explorar os trabalhadores.
O presente processo contrarrevolucionário em Portugal e em todo o mundo capitalista, semelhante em todos os lados, e que consiste em liquidar o direito à saúde pública, à educação, à habitação, na privatização dessas obrigações sociais que o Estado burguês fora forçado a assumir, na entrega ao grande capital de todas as empresas públicas lucrativas, em retirar aos trabalhadores todos os direitos que tiverem, em aumentar a exploração, reforçar a centralização e concentração capitalistas, etc., decorre fundamentalmente de duas razões: 1) do desaparecimento da URSS e do sistema socialista mundial e b) do aprofundamento da crise sistémica do capitalismo.
Conquistas como o direito à saúde, à educação, à segurança social, o regime parlamentar burguês e as eleições “livres”, os direitos laborais etc., existiam nas outras democracias burguesas europeias. Em muitos países capitalistas existiam grandes empresas nacionalizadas. As teorias keynesianas e o estado-providência foram a resposta do capital às novas realidades criadas com a vitória da URSS sobre o nazi-fascismo.
O final da guerra proporcionou um desenvolvimento económico grande das potências vencedoras, EUA, França, Reino Unido, e o medo de que a classe operária europeia se levantasse contra a burguesia e exigisse os mesmos direitos de que os povos socialistas usufruíam, levaram a que o capital fizesse essas cedências. A única revolução da qual a presente contrarrevolução é a antítese, é a revolução de outubro e a formação da URSS e do sistema socialista.
Portugal estava 48 anos atrasado em relação à Europa. Parte (dizemos “parte”, porque em vários aspetos o 25 de abril foi mais além) daquilo que o 25 de abril alcançou, já outras democracias burguesas europeias tinham alcançado. Em Portugal, só o 25 de abril tornou possível a sua existência.
Que a ofensiva do capital é oposta aos “valores de abril” é uma evidência. Que se verifica a violação da CRP, mesmo gravemente mutilada em comparação com a de 1976, porque “o papel aguenta tudo” e o que determina os processos é a correlação de forças de classe no terreno não deveria admirar ninguém, é o bê-á-bá do materialismo histórico. Que a ofensiva monopolista fere os interesses do povo e aumenta a exploração é uma verdade de La Palice e qualquer cidadão pouco politizado o sabe.
“A vida nacional é profundamente marcada pelo aprofundamento da política de direita”, é verdade, mas pela ofensiva do imperialismo que varre todo o mundo e não é uma particularidade nacional. Só quem parou no tempo pode afirmar que a “política de direita” se pode filiar no processo contrarrevolucionário contra abril. A dinâmica do processo revolucionário em Portugal e a respetiva contrarrevolução foram concluídos. O facto de os trabalhadores e o povo terem estado sempre a perder desde o 25 de abril explica-se pelo facto de, em linha com a destruição das conquistas de abril, o movimento operário ter mergulhado um profundo refluxo a nível global e o capitalismo ter tido forças para passar à ofensiva com o fim da URSS.
2. Os valores de abril e a Constituição
O que são os “valores de abril”, alguém sabe? As conquistas do 25 de abril sabemos o que foram: as nacionalizações, o fim dos monopólios, a destruição das estruturas fascistas, a Reforma Agrária, o controlo operário, as liberdades, designadamente de associação política e sindical, os direitos laborais, a saúde, educação e segurança social públicas universais e asseguradas, (a independência das colónias), etc. Então temos de perguntar: por que é que não se fala das conquistas de abril e se fala apenas dos valores de abril? É que o vazio do conceito “valores” faz esquecer o conteúdo das conquistas e a evidência de que há a necessidade de um novo levantamento das massas pelo socialismo para trazer de novo essas conquistas e ir muito além delas.
Falar das conquistas de abril, descrevendo-as ou enumerando-as, tem por consequência tornar evidente tudo o que se perdeu com a contrarrevolução, a distância que nos separa do que foi conquistado e depois perdido; tornar evidente que as conquistas de abril só serão retomadas com uma nova revolução e a criação das condições para que se mantenha e não se perca como o 25 de abril. Implica que é preciso algo mais do que suspiros e lamentos de que a ofensiva capitalista vai contra os “valores de abril” que se “projetam no futuro”, blá-blá-blá.
Sobre isto a teses nada dizem, obviamente, se que o que se pretende é melhorar o capitalismo e não tomar o poder dos trabalhadores, única via para a retomada do que abril conquistou e ir muito mais adiante.
A Constituição não é um porto seguro em que se possa “ancorar” “abril” (mesmo no sentido retórico da palavra), porque o atual texto constitucional reflete a alteração da relação de forças contra os trabalhadores e a favor da burguesia que foi determinando as suas sucessivas alterações.
E, no entanto, é à defesa dessa Constituição que o PCP apela, à defesa de uma Constituição que: reduziu o número de deputados dando um golpe profundo na proporcionalidade do sistema eleitoral e a admitiu a existência de círculos uninominais; eliminou: os objetivos de assegurar a transição para o socialismo; o princípio da irreversibilidade das nacionalizações; a referência à Reforma Agrária; à socialização dos meios de produção; o princípio da gratuitidade do SNS; o exclusivo de emissão de moeda pelo Banco de Portugal; a extinção dos Conselhos de Informação dos órgãos de comunicação social do setor público; o fim do primado da Constituição da República Portuguesa sobre o direito comunitário.1
Aspetos que sobraram da revisão constitucional são importantes … garantia da segurança no emprego, direito de intervenção das comissões de trabalhadores na vida das empresas, direito à contratação coletiva, à retribuição justa (?), à conciliação da vida profissional com a vida familiar, a uma rede de centros de repouso e de férias, a habitação adequada, à segurança social e à saúde, à educação e à cultura, a incumbência prioritária do Estado em promover o aumento do bem-estar social e económico e a qualidade de vida das pessoas, bem como a justiça social (?) e a coesão económica e social do território nacional2… etc. Onde está tudo isto? O papel aguenta tudo.
(Não se aborda os princípios económicos porque não queremos alongar muito mais o texto. Sublinhamos apenas que o que lá está escrito é vazio e utópico)
Está certo que se invoquem os direitos constitucionais na luta pelo seu cumprimento, mas se não for a força da luta a impô-los eles continuarão placidamente na Constituição por cumprir.
3. A democracia, o regime democrático e o Estado
A existência de um regime democrático em oposição ao regime fascista foi um passo de gigante dado pelo 25 de abril. Mas o regime democrático em Portugal hoje não é diferente dos outros “regimes democráticos” que existem em todo o resto do mundo capitalista. O regime democrático em Portugal é uma democracia burguesa onde os ricos exercem livremente a sua ditadura para explorar quem trabalha. Os trabalhadores são “livres” de votar ora no PS ora no PSD, e o parlamento legisla para defender os interesses dos capitalistas. Esta democracia não é o suprassumo do 25 de abril nem aquela que os trabalhadores devem desejar. Esta democracia foi aquela que resultou da destruição das bases materiais (económicas) da democracia do 25 de abril.
A democracia proletária é um nível muito mais alto de democracia para quem trabalha, mas não é essa democracia que as teses reivindicam e muito menos dizem o caminho para se lá chegar.
“Regime democrático” e o Estado na conceção de Marx, Engels e Lenine, podemos dizer, expressam uma única realidade: a existência do Estado. O Estado é o instrumento de domínio de uma classe sobre outra. Enquanto houver Estado não há democracia – existem classes - quando não houver democracia não há Estado – acabaram as classes. Esta conceção de Estado está completamente arredada de toda a filosofia que impregna as teses e o Programa do PCP e tem por consequência o erro crasso da sua estratégia e da sua tática expressas agora nas teses.
No mesmo 2º capítulo das teses alude-se a uma “perversão do regime democrático” para descrever o atual regime e a atual situação política em Portugal e fala-se numa “reconfiguração do Estado ao serviço do grande capital”. Estas afirmações não têm qualquer correspondência com o marxismo-leninismo ou o materialismo histórico que muitas vezes se afirma aceitar, não têm sentido, são pura retórica.
Em Portugal os trabalhadores, enquanto classe, nunca estiveram no poder, a classe nunca dirigiu a sociedade e reprimiu a burguesia. Alguns dos seus representantes estiveram em governos provisórios, de curta duração, aliás, mas isso não é poder estatal. Realizadas as primeiras eleições legislativas e formados os governos constitucionais, sempre o poder do Estado fez pesar a sua mão
a defender o capital. A Assembleia da República também não é um órgão neutro, é um elemento do poder estatal burguês, é composta por uma esmagadora maioria de partidos burgueses, assim como o governo e outras e instituições como o poder judicial.
Nenhuma destas noções fundamentais do marxismo-leninismo estão refletidas nas teses. E quando se afirma que a “reconfiguração do Estado ao serviço do grande capital é a expressão direta da dominação do poder económico sobre o poder político” retiram-se duas ideias: a primeira é que nalgum momento da história deste meio século o Estado não esteve ao serviço do grande capital, portanto, grosso modo o 1º Governo constitucional de Mário Soares e as maiorias burguesas na Assembleia da República não estiveram ao serviço do grande capital, as hierarquias bolorentas das Forças Armadas e das polícias, o aparelho da justiça etc. também não estiveram; a outra é que se admite que o Estado, o Estado acima das classes como é entendido por toda a parte nas teses, o Estado burguês, possa fazer outra coisa diferente de servir o interesse dos donos do capital.
O poder político, o Estado, enquanto ditadura de uma classe, por definição do socialismo científico, reflete o poder económico, a propriedade dos meios de produção da classe no poder e a distribuição da riqueza, não é neutro nem está acima das classes. O Estado burguês, aquele que existe antes do Estado proletário não pode dominar o poder económico, é o órgão de domínio do poder económico. A visão do Estado fora e acima das classes é a visão do papel do Estado imposta às massas para esconder a sua verdadeira face de dominador dos produtores. Desejar que o Estado capitalista domine o poder económico da burguesia é uma ficção e não é próprio de um partido proletário assumir as ideias Keynesianas de que o Estado serve para regular a economia.
Estas questões são cruciais sempre e, particularmente, quando se vai realizar um Congresso, que é o órgão máximo de um partido comunista. E das duas uma: ou as teses não sabem o que estão a dizer ou estão a admitir tacitamente que o partido não quer assumir o poder do Estado quando for a hora disso acontecer, quer que o Estado burguês mais ou menos “democrático” prevaleça e portanto, também não quer o socialismo.
A “nova fase da vida política nacional”
É obrigatório que o XXII Congresso faça a avaliação crítica da aliança do PCP com o PS através da chamada “geringonça”. A esse entendimento com o PS o PCP chamou “nova fase da vida nacional”, esperando um tempo de grandes mudanças ao ponto de lhe chamar “nova fase”. E a avaliação que as teses fazem é positiva. Ora, se compararmos as migalhas obtidas com o acordo PS-PCP com as reais necessidades dos trabalhadores, podemos dizer que foram um grão de areia na imensa praia que representa a exploração dos trabalhadores portugueses pelo capital.
As ilusões semeadas nas massas acerca das potencialidades de tal acordo foram imensamente mais prejudiciais para a luta de classes do que aquilo que se obteve. Desde logo porque manietou a luta de massas e provocou o atentismo evitando fortes confrontos abertos com o governo. Afinal a política do governo contava com o apoio do partido dos trabalhadores que a caucionou com o seu voto favorável do orçamento de Estado. Os pequenos alívios no bolso dos trabalhadores depressa foram absorvidos pela inflação e o aumento do custo de vida.
Depois porque criou a ilusão de que a solução dos problemas dos trabalhadores estaria no parlamento e não na luta. No plano político criou a ilusão de que uma “maioria de esquerda” seria possível e que isso traria alguma vantagem para as massas que trabalham. A luta política mais uma vez ficou reduzida à luta económica.
As linhas vermelhas do PS, obviamente eram manter e reforçar o poder dos monopólios, dando em troca algumas migalhas que não afetassem o poder do capital e o PCP consentiu-o. O PS o que quis foi comprometer o PCP e os trabalhadores com a sua política e conseguiu-o.
Sublinhe-se que o PCP assinou o acordo que deixava de fora questões fulcrais para a luta dos trabalhadores: a lei da revogação da contratação coletiva, o princípio do tratamento mais favorável e o fim da precaridade, a redução do horário de trabalho e outras. Claro que o PS não o permitiria e o PCP aceitou as sobras que foram atiradas aos trabalhadores.
Como resultado, depois de se verificar que uma maioria de “esquerda” tal como as maiorias de direita, de centro e mais ao lado também nada resolviam, o Chega alcança 50 deputados, o PS baixa o seu resultado eleitoral em favor do PSD e o PCP perdeu 14% dos seus votos e 2 deputados.
O PCP acusa o PS de ter “optado por uma estratégia orientada para o prosseguimento das suas opções de classe” e de ter “uma indisfarçável ambição de poder”. Então, desde há 50 anos, o PS teve alguma “opção de classe” diferente? O PS não “optou por”, o PS é um partido burguês e não pode fazer outra coisa senão servir a burguesia. O PCP não sabia? Porquê iludir os trabalhadores? O PS não pode ser convertido em aliado do partido do proletariado. Um leão não poder ser reconvertido em gatinho inofensivo. A classe não pode ser aliada do inimigo de classe.
O 2º capítulo termina dizendo que “a luta em defesa do regime democrático e pela exigência do cumprimento da Constituição da República e dos direitos políticos, económicos, sociais e culturais nela consagrados, a promoção dos valores de abril na sua relação direta com os interesses e direitos dos trabalhadores e do povo assumem extrema importância e constituem um desígnio de convergência para todos os democratas e patriotas”. A análise destas afirmações já foi feita nas linhas precedentes.
No entanto, sublinha-se uma ideia e a ausência de outra. Quando se fala do “desígnio de convergência para todos os democratas e patriotas” fica-se sem saber onde estão e quem são eles.
Era bom, pelo menos, clarificar se o PS ou a “ala esquerda do PS” - onde possivelmente o PCP arruma Pedro Nuno Santos e até António Costa, parceiro de alianças governamentais e coligações autárquicas e que já não conta para a equação na sua função de gestor contratado do grande capital europeu - entram nesse grupo de “democratas e patriotas”.
A ideia ausente é a da luta pelo socialismo que, pelo menos, ficaria bem a encerrar um capítulo das Teses para o XXII Congresso do PCP perspetivando o futuro do país e o dos que nele labutam.
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