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O Livro Negro Das Relações De Trabalho Sob O Capitalismo (Pt.2/2)





Este artigo publica-se em 2 partes.


O Livro Negro Do Passado, Do Presente E Do Futuro Das Relações De Trabalho Sob O Capitalismo - Parte 2

(Para a parte 1 carregue aqui)



Horário, organização do tempo de trabalho, local de trabalho, jornada de trabalho


«Para além dos impactos a nível da digitalização, a ampla utilização de horários de trabalho em regime de flexibilidade ou de adaptabilidade, horários de trabalho em regime de jornada contínua, a tempo parcial, concentrados, redução de horário, banco de horas, trabalho no domicílio, escritório móvel ou teletrabalho, sugere que, em muitos casos, pode haver utilidade na adoção deste tipo de modelos de prestação de trabalho ou organização do tempo de trabalho...» diz o LVFT.


Esta citação contém quase um programa completo da contrarrevolução laboral que o governo do PS admite adotar nas matérias mencionadas. São os conceitos de local de trabalho, jornada de trabalho, organização do tempo de trabalho que são postos em causa e os inerentes direitos adquiridos. Não se falando aqui em salários, podemos facilmente adivinhar o que acontecerá ao salário para trabalho a tempo parcial. É por aqui, que, em nome da recuperação económica e com a ajuda do governo, o patronato vai centrar a ofensiva contra os direitos que tanto custaram a ser conquistados.


De qualquer modo, não se fabrica automóveis em trabalho remoto, não se pesca na web, não se apanha fruta pelo computador, pelo que a dimensão do trabalho remoto tem obviamente as suas próprias limitações objetivas, e por muita IA que se fabrique, o trabalho humano jamais será dispensável. Enquanto houver capital haverá classe operária (o inverso não é verdadeiro).


Vínculos laborais/precaridade


«… assistimos à emergência de novas formas de trabalho, cada vez mais plurais e cada vez menos típicas, nomeadamente no modo como se processam ao longo do tempo e no espaço, assim como no tipo de relação estabelecida entre empregadores e trabalhadores» diz o LVFT a págs. 9.


Entre as formas atípicas de trabalho e emprego caracterizadas por uma elevada flexibilidade e das quais poderá resultar uma segurança reduzida para os trabalhadores, surgem o trabalho em part-time, a colocação por empresas de trabalho temporário, o trabalho subcontratado, trabalho remoto, nomeadamente prestado no domicílio, contratos a termo certo, intermitentes, descontinuado e de muito curta duração, bem como relações de trabalho com múltiplas partes, para além de outras situações com riscos ainda mais elevados como relações de trabalho “dissimuladas” e por conta própria mas economicamente dependentes, ou com remuneração irregular.» , (p.110) (sublinhado nosso).


As situações descritas, que abrangem de facto as situações de precaridade conhecidas, não pertencem ao futuro, são já uma realidade presente de há muito e de todos conhecida, designadamente para os jovens à procura de emprego. Os desempregados recorrem à UBER e aos TVDE para sobreviverem e não são reconhecidos como trabalhadores dependentes, não têm um salário, um horário de trabalho, folgas, direito a proteção social. E os sucessivos governos têm permitido esta selva laboral.


E o governo, num auto-elogio descarado diz que «...o acordo tripartido alcançado em sede de concertação social, intitulado “Combater a precariedade e reduzir a segmentação laboral e promover um maior dinamismo da negociação coletiva”, foi de grande relevância para este percurso, que culminou na reforma laboral de 2019, levada a efeito pela Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro, que criou um conjunto muito significativo de medidas de combate à precariedade laboral e de incentivo à contratação coletiva». (p.40) Toda a gente vê que isto é verdade...


A “conciliação dos interesses das empresas, dos trabalhadores e da famílias.”


O LVFT fala obsessivamente da conciliação do trabalho em casa com a vida familiar tornando-se um foco de propaganda desta forma de prestação de trabalho. É que essa conciliação é impossível na esmagadora maioria dos casos, como muitos trabalhadores já sentiram durante a pandemia. Não muitos terão alguma vantagem nisso e muitos outros ainda estão iludidos. Só uma minoria quererá ou poderá ser «nómada digital», por muito que os média nos impinjam isto todos os dias.


Diz o LVFT que «As crescentes pressões para a flexibilidade, em particular nos tempos de trabalho, e a introdução e omnipresença de novas tecnologias que potenciam uma conectividade permanente, podem originar, por um lado, uma melhor conciliação entre vida familiar pessoal e profissional», ao mesmo tempo que reconhece que surgem novos problemas com a limitação e delimitação dos tempos de trabalho, que na nova economia digital torna-se cada vez mais difícil delimitar qual o tempo de trabalho e o tempo de descanso e repouso que há o risco de diluição crescente entre o tempo de trabalho e o tempo de repouso e lazer dos trabalhadores, provocada não apenas pelo aumento da facilidade das comunicações, mas também pela erosão da separação entre o local de prestação de trabalho e os locais que tradicionalmente eram de não trabalho. E considera que o problema se põe «... com particular acuidade em formas de prestação laboral como o teletrabalho, mas na verdade é transversal num quadro de ubiquidade das novas tecnologias de informação e comunicação.


E vêm o LVFT e os média falar do «direito à desconexão» como a descoberta salvífica do século XXI. Não e não! As leis do trabalho (apesar de merecedoras de críticas) ainda não determinaram um «dever de conexão». Definem que o trabalhador tem direito a um posto de trabalho, a um horário de trabalho, a férias, etc. pelo que é inaceitável que se considere que o direito do trabalho parte do zero nesta questão.


Não vai ser possível conciliar trabalho e vida familiar na esmagadora maioria dos casos, e o governo sabe-o muito bem. O trabalhador acorda e adormece com o trabalho ao lado como os tecelões do século XVIII e XIX que tinham em casa máquinas de tecer, e rapidamente se vão extenuar psiquicamente.


O isolamento do trabalhador não é só na relação contratual e organização do trabalho. Vai ficar afastado de outros companheiros de trabalho, dificultando ao máximo a sua organização social e sindical, embora o LVFT jure pela alma da mãezinha que promete o fomento da contratação coletiva e o “diálogo social”. Vale a pena fazer uma citação, quiçá longa do LVFT, para se ver como o próprio documento tem consciência dos problemas:


«Relativamente ao teletrabalho existem diversos riscos psicossociais já identificados quando este é prestado a partir do domicílio o poder de direção do empregador interfere com a esfera privada do ambiente familiar, aumentando consideravelmente o nível de intromissão na privacidade Já não é só o trabalhador que é sujeito diretamente aos riscos psicossociais presentes na relação de trabalho; o risco pode estender-se, também, … a toda a família. Associados a todos os fatores de risco psicossocial, normalmente presentes nas relações de trabalho, devemos adicionar outros como: a pressão para o cumprimento das tarefas, a pressão decorrente da necessidade de criação e delimitação de um espaço físico apto para o trabalho, a imposição em casa de condições de trabalho; bem como a conectividade permanente com o empregador. A estes fatores tradicionais podem ainda adicionar-se o isolamento, a solidão, a escassez de contacto humano para a discussão e interação social, a menor suscetibilidade na troca de experiências, a perda de poder reivindicativo e, em função desse desligamento ; a sujeição a condições de trabalho que o trabalhador não pode comparar e controlar. Neste âmbito, cabe notar que a expressão “stress7 tecnológico” começa a ganhar relevância, podendo ser descrito como um fenómeno associado ao facto de se estar permanentemente online durante o trabalho e que “ocorre quando os benefícios potencialmente proporcionados pelos novos dispositivos digitais se transformam em pressão exercida sobre o trabalhador na forma de expetativas implícitas ou explícitas de um empregador ou de colegas, expetativas ou exigências de clientes, problemas de conectividade que perturbam a rotina normal de trabalho ou quando os trabalhadores se tornam dependentes de dispositivos digitais, em particular dispositivos móveis como os smartphones ou os tablets” (p.148)


A perversidade da introdução de certos tipos de inovações tecnológicas


O LVFT refere que a IA pode ser também altamente intrusiva para o trabalhador e pressioná-lo para aumentar a intensidade do seu trabalho, permitindo ao patrão controlar a produtividade, saber onde se encontra o trabalhador, como se comporta, extrair informação quanto a medidas a tomar para aumentar a produtividade, por exemplo. Já hoje tais métodos se aplicam a trabalhadores de transporte de mercadorias, a vendedores que utilizam carrinhas das empresas, a trabalhadores da UBER. Estes métodos permitem uma vigilância total e permanente do trabalhador, bem como um tratamento quase ilimitado de dados pessoais ao arrepio do o n.º 1 do art.º 26.º da CRP que reconhece expressamente o direito "à reserva da intimidade da vida privada e familiar".


O uso de gestão algorítmica tem vindo a aumentar e foi fortemente impulsionado com a pandemia da COVID-19 tendo sido ouvido nos média que tinham sido utilizados algoritmos para escolher e quantificar os trabalhadores a despedir na TAP.


A contratação coletiva


A contratação coletiva potencia o poder dos trabalhadores face ao patronato. Foi uma conquista que os trabalhadores alcançaram com o 25 de abril, que foram conseguindo manter até que o governo de governo PS de Sócrates, em 2009, com Vieira da Silva como Ministro do Trabalho, declarou que caducavam os contratos cujo prazo expirava se o patronato não repetisse a sua assinatura. E assim foi dada uma machadada nos direitos que esses contratos, mais antigos, conseguidos numa relação de forças mais favorável aos trabalhadores consagravam e na contratação coletiva no seu conjunto.


Repare-se que a caducidade dos contratos, daqui a não muito tempo, terá como efeito direto que as próximas – e as já atuais - gerações de trabalhadores não vão ter direito a qualquer contratação coletiva. A caducidade dos contratos em conjunto com a eliminação da norma do tratamento mais favorável que permite ao patronato praticar condições abaixo do definido no Código do Trabalho pretendem destruir toda a regulamentação “equilibradora” da relação de trabalho. Está ainda em causa o próprio conceito de profissão através da polivalência do trabalhador e o capital prepara-se ainda para cavar um fosso entre trabalhadores altamente qualificados ganhando altos salários e os trabalhadores não qualificados com salários de miséria, eliminando os atuais níveis intermédios.


É ainda importante referir a perversidade do efeito do período experimental alargado a 180 dias pelo PS sobre a contratação coletiva. Esta norma significa que o “período experimental” se vai eternizar até um trabalhador ser substituído por outro num ciclo infernal de precaridade.

O facto é que, na ausência de contratação coletiva, o trabalhador se encontra sozinho perante o poder discricionário do patronato e que todas as mudanças que se perspetivam no mundo do trabalho vêm no sentido de enfraquecer a força dos trabalhadores.



No LVFT o próprio governo aponta para a implementação de muitas dessas mudanças na Administração Pública, designadamente o trabalho à distância. Como vão os trabalhadores ser avaliados, como vão progredir na carreira, como conseguem um vínculo efetivo, são questões que, de modo nenhum, estão respondidas. Mesmo sem as “modernices” das novas formas de prestação de trabalho, mas que, de resto, há muito vêm sendo praticadas, o facto é que nem às reivindicações de hoje dos trabalhadores da Administração pública o governo responde.


A pandemia da doença COVID-19 traduziu-se numa imediata contração da negociação coletiva, reconhece o LVFT. Segundo os seus cálculos, no cômputo geral, foram publicadas 169 convenções coletivas em 2020 (-29% na comparação homóloga) com uma cobertura potencial de 488.482 trabalhadores (-45% em termos homólogos).


Salários: sobre aumentos salariais o LVFT é um poço de silêncio. Ou melhor, é claríssimo se virmos o negativo da fotografia. Todas as modificações previstas no mundo do trabalho apontam para a criação de condições para a queda dos salários.


É por isto que se afirma que, não só na situação presente, como nas perspetivas futuras tudo se conjuga – imperialismo, patronato, governos – no sentido da recuperação da crise através do aumento da exploração e da degradação das condições de vida dos trabalhadores.


As soluções do LVFT (políticas do PS)


As alterações decorrentes da introdução das novas tecnologias, vamos repetir, estão muito longe de constituir o enorme conjunto de questões que se colocam aos trabalhadores já hoje e3 em todos os dias. As confeções ainda não se fazem por computador (apesar de muito auxiliadas por eles), os tijolos não se assentam sozinhos e o lixo não é recolhido ainda por robôs. Por outro lado, como vimos, o patronato, desde o início da pandemia, aproveita-se da situação para impor novas condições de trabalho, fazendo tábua rasa dos contratos coletivos e dos direitos individuais, impondo até a utilização de equipamentos pessoais do domicílio dos trabalhadores e até se recusam a pagar a energia consumida em casa com as tarefas profissionais.


Porém, o que tem sido a excecionalidade na prestação do trabalho e na sua organização tende a provocar situações de facto se não houver reação dos trabalhadores e dos seus sindicatos.


As soluções que o PS e o se LVFT apontam na teoria são as mesma receitas filistinas, a ver se enganam os trabalhadores, próprias da hipocrisia pequeno-burguesa espelhada na socialdemocracia, intenções pias que sabem de antemão não ser possível serem aplicadas.

E então enchem o LVFT de coisas, a título de «linhas de reflexão» como «reforçar medidas de proteção social, de inspeção do trabalho e de dinamização da negociação coletiva nos domínios com impacto na conciliação entre trabalho e vida pessoal e familiar» p. 92, «reforçar a importância do diálogo social e da negociação coletiva», «promover a disseminação de uma cultura de diálogo social, negociação coletiva, participação dos trabalhadores e dos seus representantes e, de modo geral, a democracia interna nas organizações, incluindo as organizações empresariais», p. 188 «o diálogo social a todos os níveis, incluindo a concertação social tripartida e a negociação coletiva setorial ou de empresa estão amplamente previstas e densificadas em fontes legislativas, nomeadamente, no Código do Trabalho» ! p.120, etc.


E “o futuro do trabalho” salvaguarda-se estipulando que, se apesar de tanto reforçar, não for possível tal concertação de interesses antagónicos, e se não existir qualquer acordo com os sindicatos, que deixa de ser obrigatório, é o empregador que deve estabelecer tais regras, sendo certo que não se prevê qualquer sanção para incumprimento desta obrigação, reconhecendo o tal Livro Verde a impossibilidade da atuação da Autoridade para as Condições do Trabalho, (p. 149).


Todos os trabalhadores, os «antiquados» e os «modernizados» sabem o que tudo isto vale. Questões de fundo como os salários, a precaridade, o desemprego, o prolongamento dos horários de trabalho, a revogação das leis gravosas do Código do Trabalho, as reivindicações dos trabalhadores da Administração Pública não têm qualquer solução na prática hoje, nem o LVFT a eles se refere, escondendo atrás do foquetório da modernidade estes problemas que os governos há muito não querem resolver.


Pressupostos ideológicos


Vale abordar, por fim, o pano de fundo ideológico do sobredito LVFT.


Citamos apenas dois passos paradigmáticos a pgs 139 e 141

«...construção de estratégias de adaptação negociada e concertada à mudança. Igualmente, o reforço da participação dos trabalhadores, quer diretamente, quer através dos seus representantes sindicais ou da sua organização em comissões de trabalhadores, em diferentes níveis e dimensões das empresas e das tomadas de decisão, contribui para a eficácia e para a apropriação do processo coletivo num quadro inclusivo de participação, promovendo culturas empresariais mais democráticas e dialógicas»


« ... coexistem ou há mesmo uma passagem dos modelos tradicionais de trabalho das organizações, assentes numa liderança hierárquica, numa estrutura organizacional rígida e em ambientes de trabalho rígidos e não integrados, para novos modelos organizacionais baseados na empatia, compromisso, Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho empoderamento e autonomia, bem como na agilidade e espaços de trabalho inteligentes, na aposta nas competências, e qualificações como vantagem competitiva e num novo paradigma de segurança, autentificação e conformidade.»


Em resumo, as questões da exploração dos trabalhadores devem ser resolvidas pela conciliação de classes, e toda gente ganha — trabalhadores e patrões — com as grandes novidades laborais que estão ali prontinhas a chegar. O país vai, enfim, modernizar-se com estas teorias e com os dinheiros do PRR que as vão pôr em prática.


A luta dos trabalhadores


Só a luta dos trabalhadores pode travar a ofensiva já em curso em que o patronato tenta aproveitar situações de facto decorrentes da pandemia e que o governo protege para as tornar assentes para o futuro. É muito importante alterar a relação de forças no terreno desmascarando todas estas tentativas do governo e do patronato junto dos trabalhadores, rejeitar a conciliação de classes e partir para a luta. O governo não se pode livrar da luta dos trabalhadores da TAP, da Altice, de Groundforce, da Dielmar e de tantas outras. Mas é necessário que os trabalhadores compreendam que o PS e o seu governo não pode nem quer resolver os seus problemas, nem o Orçamento de Estado vai alterar o que quer que seja desta realidade, pelo contrário, consolida-a criando ilusões com as migalhas que vão deixando cair. Só o exercício da luta a patamares muito mais elevados e com determinação pode impor outros resultados.


Mas é necessário também dizer aos trabalhadores que estamos numa fase de transição com vistas à recuperação do sistema capitalista e que os ganhos destas modificações, a introdução de tecnologias, acréscimo da produtividade do trabalho, etc, etc. vai servir diretamente para o sistema reproduzir e aumentar os seus lucros, numa base mais alargada, uma vez mais à custa dos trabalhadores. E aprofundar a consciência dos trabalhdores de que há uma saída para eles, o socialismo, o poder do povo, por mais distante que ele possa estar, porque é no final desse longo caminho que se encontra o futuro da humanidade.



À exceção da nota 1, todas as citações são retiradas do LVFT, publicado em https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/documento?i=livro-verde-sobre-o-futuro-do-trabalho em «ficheiros». As notas estão em itálico e, sempre que possível, com indicação da página respetiva. Os sublinhados são da responsabilidade do sítio.

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