Tal como tínhamos afirmado, a Conferência do PCP tinha outros objetivos menos inocentes para além daqueles que o CC lhe atribuiu na sua reunião de 17 e 18 de setembro. Viu-se que o grande objetivo tinha sido a mudança de Secretário-Geral e a despedida do anterior num ambiente encenado com milhares de militantes e muitas bandeiras vermelhas, unanimidades, etc., que se assemelhava a um Congresso e acabou por ter essa leitura para muitos militantes e a opinião pública em geral.
Constata-se agora que a conferência foi também preparada para dar cobertura ao aprofundamento de uma linha política que identifica o PCP ainda mais como um partido do sistema e o coloca no caminho da social-democratização onde tantos partidos comunistas se perderam na lama da conivência com o capitalismo.
O novo Secretário-Geral, como era esperado, foi solicitado pela comunicação social a dar entrevistas para apalpar o terreno. Numa dessas entrevistas, à Lusa, afirmou que a Conferência Nacional do passado fim de semana “acaba por animar” e dar “alguma força” que ajuda a que “alguns se aproximem e a que outros se reaproximem” (1) e, no seu discurso na conferência também disse que contava “com os que se aproximam e com os que se reaproximam” do Partido. Daqui se conclui que a afirmação à Lusa não foi avulsa, mas pensada em ligação com o que tinha dito no discurso da Conferência. E deduz-se a sua completa intencionalidade quanto ao alvo, uma vez que, que se saiba, no PCP nunca se fechou a porta a ninguém desde que viesse por bem, sem que fosse necessária qualquer publicitação da tal prática, nem qualquer apelo público.
A questão central que se coloca é saber se o reingresso de revisionistas significa novas alterações estratégicas e táticas e nos princípios do centralismo democrático de modo a acolher as suas teses. É óbvio que, para estes, o regresso não se fará sem condições.
Tentativas de destruir o PCP
Na sua entrevista à Lusa, Paulo Raimundo diz que foram difíceis os tempos em que se desenrolou a luta interna no PCP nos anos 2000 em que se defrontavam aqueles que queriam defender um PCP revolucionário à altura das suas responsabilidades e história e os que queriam a sua social-democratização, para a qual o camarada Álvaro Cunhal repetidas vezes alertou. Na verdade, foram tempos difíceis, porque esse ataque chegou do interior do núcleo mais responsável do PCP e contava com vários membros da Comissão Política e do secretariado do CC como Edgar Correia, José Soeiro, Carlos Brito, Carlos Luís Figueira, António Andrés, Henrique de Sousa entre outros, alguns conhecidos deputados como João Amaral e outros militantes com responsabilidades como Helena Medina ou Domingos Lopes.
Este ataque interno foi precedido de alguns outros como aquele protagonizado por Zita Seabra, membro da Comissão Política e o “grupo dos 6” (Vital Moreira, Silva Graça, Veiga de Oliveira, Sousa Marques, Vítor Louro, Dulce Martins) , prosseguiu com a “Terceira Via” com Raimundo Narciso, Pina Moura, Barros Moura e José Luís Judas, todos membros do Comité Central à exceção do último.
Estes grupos revisionistas foram criados em diferentes anos com as mesmas exigências de abandono do marxismo-leninismo, da via revolucionária para a conquista do poder através da luta de classes, negação da revolução socialista, gestão da democracia burguesa, escolha do parlamentarismo como única forma de luta, reivindicação de plataformas frentistas de convergência com o PS. Todos estes grupos foram derrotados no seu tempo, mas a semente ficou e nem todos deram a cara nessa altura.
Dois anos após a realização do XV congresso a 15 de fevereiro de 1998 o C.C. aprovou um documento conhecido como «Novo Impulso». Novo impulso na organização, intervenção, e afirmação política. Esse novo impulso, na prática, (com uma verbalização mais hipócrita) retomava os velhos impulsos revisionistas do grupo dos seis, da terceira via e do grupo INES. Nele, definia-se o partido como "firmemente empenhado em impulsionar a agregação de forças, energias e aspirações democráticas e de esquerda, que é indispensável para a concretização de uma alternativa progressista à mera alternância entre PS e PSD na realização da política de direita" (2)
Dissimulando projetos que atacariam as bases do centralismo democrático, defendiam a menorização do papel dos funcionários do Partido enquanto revolucionários profissionais e preconizavam a eleição “na base” dos responsáveis dos organismos e reivindicavam a “horizontalidade” das discussões.
Pretendia-se, deste modo, atacar o centralismo democrático, fator fundamental, segundo os próprios Estatutos do PCP, para "assegurar simultaneamente, como características básicas, uma profunda democracia interna, uma única orientação geral e uma única direção o central" (Estatutos do PCP, Capítulo III). Ou seja, punha-se em causa a unidade de direção, a unidade de ação, a discussão interna, a "livre expressão das opinião e a sua atenta consideração e debate" para "o cumprimento por todos das decisões tomadas por consenso ou maioria", (id) que canalizam as forças para a luta numa única direção. Buscava-se a descaracterização do elemento que materializa a própria força do PCP, desacreditando as ferramentas organizativas que lhe haviam permitido permanecer como o referente da luta da classe operária e de todos os trabalhadores.
Enquanto um partido for verdadeiramente comunista, não cessarão de aparecer desvios e grupos internos oportunistas , situação que se insere na luta de classes travada sob o capitalismo e que, na sua atual fase imperialista se liga materialmente com a incessante proletarização da pequena-burguesia e a formação da aristocracia operária, como ensinou Lenine, e se liga também à luta ideológica de classes – os incessante ataques da ideologia burguesa contra a ideologia proletária, em que a primeira dispõe de armas muitíssimo mais poderosas como a comunicação social e as redes sociais virtuais. Enquanto houver capitalismo, as tentativas de destruir os Partidos Comunistas esteve e estará sempre presente, também a partir do seu próprio seio e sempre por via das suas direções.
Enquanto existirem classes, haverá luta de classes e, no plano ideológico e político, nenhum partido comunista está imune a ataques oportunistas, pelo que a luta contra o oportunismo tem de ser incessante e permanente. A história da luta da classe operária contra o oportunismo inicia-se com a incorporação nela do socialismo científico. Desde sempre, desde a formação política dos trabalhadores em organizações políticas de classe, o oportunismo foi o seu antagonista, mas agudiza-se com a evolução do capitalismo para a sua fase imperialista.
Existe uma contradição antagónica entre marxismo-leninismo, a ideologia revolucionária da classe operária e o oportunismo político e ideológico. É, pois, incompreensível que o novo Secretário-Geral do PCP faça apelos ao regresso dos que estiveram empenhados na social-democratização do PCP, embora refira que apenas uma parte deles, sem contudo, dizer qual é. Esse apelo equivale a abrir as portas do Partido aos que antes o combateram, com maiores ou menores responsabilidades. A unidade com os oportunistas equivale à renúncia do cumprimento do papel histórico de um Partido Comunista.
«Chegar à fala com os renovadores»
Em dezembro de 2021, o jornal O Público publica uma conversa com Carlos Brito com o título «Carlos Brito: gostaria que o PCP chegasse à fala com os renovadores (3)»
Em novembro de 2022, o novo Secretário-Geral diz que «parte dos que saíram na crise de 2000 "faz muita falta"» Que leitura podem os militantes fazer dos acontecimentos que começam com declarações do anterior Secretário-Geral no sentido do rejuvenescimento do PCP e continuam com estas palavras do novo Secretário-Geral, no enquadramento de uma Conferência Nacional e na eleição de um novo Secretário-Geral?
Os revisionistas sempre defenderam alianças com o PS e as modificações da linha política e o abandono do centralismo democrático com vista à concretização desse objetivo.
Sendo abundantes os materiais documentais, referiremos apenas alguns exemplos um pouco ao acaso. Diz Carlos Brito ainda no «Avante!»: «Neste sentido, parece de grande importância a elaboração pelos comunistas de uma plataforma governativa de esquerda que seja uma resposta credível aos problemas do país...» (5)
Diz João Amaral no Expresso: «… assumimos que a viabilidade da alternativa governativa de esquerda não pode ser sustentada só pelo PCP» e que «O caminho seguro para estabelecer um diálogo à esquerda e para desfazer campanhas contra o PCP na área da esquerda é lançar o debate sobre o conteúdo da alternativa de esquerda, sobre as propostas concretas que devem caracterizar a governação à esquerda para os próximos anos» (6)
E também: «… esta é uma situação particularmente desafiadora abrindo um sério debate sobre as perspetivas de afirmação e credibilização de uma alternativa nova que ponha em causa o rotativismo que pauta o país há vinte anos» (7)
Na entrevista ao Público de 19.12.21, citando o entrevistado, o jornalista afirma que: «Histórico dirigente comunista, hoje “marxista não leninista”, Carlos Brito acredita que o partido que deixou há quase 20 anos travará o declínio eleitoral, se dialogar com quem o tentou renovar. Também não acredita que o país regresse às políticas progressistas sem embarcar na “geringonça”. (8)»
O que se pode extrair do que atrás foi dito?
a) Estas teses revisionistas não se distinguem da atual linha política do PCP em torno da “política patriótica e de esquerda”. Melhor: as teses dos revisionistas prolongam-se na atual linha política do PCP. Pensava-se que o XVI Congresso os derrotara, mas a realidade é que se alguns indivíduos saíram, as suas ideias ficaram, e alguns dos que lutaram contra eles, claramente, mudaram de campo.
b) Existe um denominador comum entre os vários grupos que queriam destruir o PCP - criar as condições para uma aliança com o PS. Quer as teses dos revisionistas em torno do «Novo Impulso», quer a atual linha política da “alternativa patriótica e de esquerda”convergem em reconhecer que há necessidade de fazer alianças com este partido. Os primeiros dizem-no mais ou menos claramente, outros, na palavra, escondem-no, mas, na ação, apoiaram-no durante dois mandatos legislativos, escondendo das massas a sua natureza social-democrata e o seu papel histórico de traição aos interesses dos trabalhadores.
c) As “alternativas” apresentadas por uns e por outros situam-se dentro do sistema capitalista, são social-democratas, reformistas, querem melhorar o sistema e mantê-lo, não derrubá-lo, assentam no eleitoralismo da democracia burguesa e enganam as massas. É interessante sublinhar o que diz C. Brito na entrevista já referida: «o partido travará o declínio eleitoral (sublinhado nosso), se dialogar com quem o tentou renovar». Os apelos do novo Secretário-Geral ao regresso de, pelo menos alguns, dos revisionistas de 2000 filiam-se também na preocupação com os resultados eleitorais? Aceita-se o conselho de Carlos Brito? Pertencem esses revisionistas à plêiade de democratas e patriotas com que o PCP se quer aliar para alcançar a “alternativa democrática de esquerda”?
d) As massas trabalhadoras portuguesas estão a constatar na prática o quanto o PS é confiável para qualquer “alternativa de esquerda”. Experienciaram o resultado de um entendimento do PCP com o PS que inaugurou, segundo o PCP, uma “nova fase da vida nacional”. Concluíram que aquele entendimento não lhes trouxe melhorias substanciais. Estão a viver pela enésima vez as consequências da política do PS nas suas vidas. E também podem concluir que a “política patriótica e de esquerda” em aliança com o PS não é possível como solução que corresponda aos interesses de classe dos trabalhadores. A “política patriótica e de esquerda” mostrou a sua falência total quando o PCP foi obrigado a retirar-se de tal aliança perante o descontentamento geral.
Um Partido de classe
Para fazer a revolução socialista, a classe operária e os restantes trabalhadores precisam de um instrumento apropriado e esse instrumento é Partido Comunista. Neste Partido de novo tipo, existe uma relação dialética de unidade entre alguns fatores: a estratégia: alcançar o socialismo através da revolução proletária, estabelecendo um Estado de classe, a ditadura do proletariado; a subordinação da tática à estratégia, isto é, qualquer passo tático tem de ser inserido no objetivo da revolução socialista e será acertado se concorrer para esse objetivo, será errado se retardar a consciência política das massas; uma teoria revolucionária, o marxismo-leninismo, a ciência do socialismo; um funcionamento simultaneamente centralizado e democrático.
Quando se viola algum destes princípios num Partido Comunista, este deixa de poder cumprir a tarefa histórica de levar o proletariado ao poder. Normalmente, estes partidos acabam a conformar-se com o que a burguesia politicamente lhes quer dar.
Muitos militantes questionam a falta de democracia na vida interna do PCP e os mais antigos podem comparar com o que era o estilo de funcionamento do Partido há pelo menos vinte anos atrás. Aprenderam métodos de funcionamento totalmente diferentes. Este é o aspeto mais imediato da questão, é a realidade com que mais se confrontam na sua vida militante e que melhor sentem e compreendem. Mas não basta ver só este lado do problema. É preciso compreender que o atual centralismo antidemocrático se liga à estratégia e à tática social-democratizadas do PCP.
Em 1998, quando se começaram a manifestar as divergências no Partido com os revisionistas que se auto-intitulavam “renovadores”, o camarada Álvaro Cunhal, num debate em Sacavém e noutros momentos, alertou que «diversos partidos comunistas se transformaram em ‘grilos’ da direita» e instou os que tais questões levantavam a definir o que pretendiam. Acrescentou ser importante «ter uma certa inquietação». «É bom que as organizações intervenham naquilo que querem que seja o seu partido» disse ainda. (9)
Notas:
1 https://expresso.pt/politica/2022-11-16-Novo-lider-do-PCP-diz-que-uma-parte-dos-que-sairam-do-partido-na-crise-de-2000-faz-muita-falta-02c04d24
2 «Por um novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido»
3 M. Guiomar Lima, O Independente, 11.08.2000
5 Jornal «Avante!» Carlos Brito, Do mar chão ao tormentoso (não conseguimos identificar o número da edição e a data, mas será um pouco anterior ao ano 2000)
6 Jornal «Avante!», 12.03.1998
7 João Amaral, Perspetivas para uma Alternativa Nova, Expresso, 10.06.2000
9 Carlos Cardoso, Jornal de Notícias, Cunhal firme nas convicções, 07.04.1998
Carlos Brito: Pode respigar-se, a título de exemplo, a afirmação de Carlos Brito «Defendi … o abandono da expressão marxismo -leninismo»3
“Gostaria que o PCP chegasse à fala com os renovadores”
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